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30 de junho de 2004

"A Fuga e a Crise", por Vital Moreira 

O ainda primeiro-ministro português não tem nenhuma razão para se congratular com a sua precipitada (?) decisão de aceitar a nomeação para presidente da Comissão Europeia. Consentiu aparecer como solução de recurso para um cargo de que os melhores candidatos foram excluídos e outros recusaram; não consegue livrar-se da impressão de que corre para Bruxelas para fugir aos problemas que não era capaz de enfrentar em Lisboa; abriu uma crise de liderança no seu próprio partido de consequências imprevisíveis; e desencadeou uma crise política no país, cuja solução não está à vista e cujos estragos dificilmente são remendáveis. É obra!
Não é segredo para ninguém que Durão Barroso apareceu à última hora como solução de segunda linha e como "mínimo denominador comum" entre os demais chefes de Estado e de governo dos Estados-membros da UE, depois de afastados os candidatos mais fortes, por efeito de vetos cruzados dos grupos alinhados com o Reino Unido ou com o par franco-alemão e da recusa de vários outros de primeira escolha. Por outro lado, ele foi o único dos vários primeiros-ministros aventados para o cargo que o não recusou, tendo os demais preferido manter os seus compromissos nacionais à frente dos respectivos governos (desde o caso do Luxemburgo ao da própria Irlanda, que tinham seguramente o apoio de todos). Finalmente, sendo um dos menos conhecidos chefes de governo da UE, não são também muito grandes as expectativas sobre o seu desempenho à frente da Comissão. Ainda ontem o "Guardian" de Londres observava justamente que Barroso "não é conhecido por ter nenhum especial talento ou visão acerca da maneira de dirigir o desmoralizado Executivo da União e de gerir as relações frequentemente perturbadas com os seus membros".
O que mais surpreendeu na inesperada aceitação do cargo por Durão Barroso tem a ver seguramente com o abandono da chefia do Governo português nas circunstâncias presentes, depois de uma pesada derrota eleitoral que põe a nu o forte descontentamento popular e que abriu justificados receios sobre a capacidade de recuperação a tempo das eleições que se avizinham no próximo ano até as eleições legislativas de 2006. É manifesto que o primeiro-ministro estava perante tarefas cuja dificuldade não era menor do que a sua premência, designadamente uma remodelação governamental que desse novo "élan" ao Executivo, a reavaliação da linha de orientação do Governo, fortemente contestada dentro das estruturas locais do partido, a resolução da disputa sobre a candidatura presidencial do PSD (entre Cavaco Silva e Santana Lopes). É evidente que em vez de enfrentar estas dificuldades, ele preferiu fugir a elas, defraudando as expectativas dos que nele confiaram para levar até ao fim o projecto de regeneração financeira e de reforma do Estado a que se comprometeu há dois anos.
Comparada com a alegada fuga de Guterres, em 2001, no seguimento da derrota das eleições autárquicas, quando verificou não ter condições políticas para continuar (o que era verdade) e o assumiu expressamente, o abandono de Barroso é muito mais comprometedor, pois aproveita expeditamente a primeira oportunidade para fugir às suas responsabilidades de primeiro-ministro, sem poder invocar falta de condições políticas, dada a maioria parlamentar que a coligação continua a deter na Assembleia da República.
Por último, era tudo menos imprevisível que a saída do chefe do Governo suscitasse dificuldades tanto dentro do partido como em relação ao governo. A nível partidário interno, Santana Lopes pode ter seguramente o apoio da maior parte das bases partidárias, a quem a sua fácil popularidade pode acenar com futuras vitórias eleitorais, bem como dos dirigentes locais e presidentes de câmara municipal, a quem ele pode abrir perspectivas de alívio das limitações financeiras que ameaçam o resultado das eleições locais do próximo ano e das eleições gerais de 2006. Nas não pode deixar de suscitar a oposição de todas as personalidade que não se revêem no populismo do candidato e que não querem ver desperdiçados os sacrifícios que o Governo exigiu ao país em nome da regeneração das administração e as finanças públicas.
No respeitante à questão governativa, é evidente que, face às dificuldades que o Executivo enfrentava e ao divórcio que as recentes eleições revelaram entre o Governo e a opinião pública, a substituição do primeiro-ministro originário por outro que não detém nem a mesma legitimidade partidária nem eleitoral não podia deixar de criar dificuldades quanto à sua credibilidade e autoridade política. Acresce que, como já foi posto em relevo por vários observadores, a solução aventada para chefiar o novo governo implica seguramente uma ruptura de continuidade quanto à orientação política em relação a pelo menos dois "dossiers" decisivos, designadamente a política de rigor e disciplina das finanças públicas e a política europeia.
Impende agora sobre o Presidente da República a responsabilidade pela resolução da crise governativa. Constitucionalmente, tudo está em aberto. Sendo o nosso regime político de índole essencialmente parlamentar, é perfeitamente admissível a formação de um novo governo no quadro parlamentar existente, com outro primeiro-ministro. Mas conferindo a Constituição ao Presidente da República a uma grande liberdade de actuação nesta matéria, incluindo a dissolução parlamentar por iniciativa própria, não é menos lícita a opção pela convocação de eleições antecipadas. A questão é portanto exclusivamente política, tudo dependendo do juízo presidencial sobre as alternativas disponíveis
Em condições normais, havendo uma coligação para efeitos governamentais com maioria parlamentar, a solução passaria naturalmente pela formação de um segundo executivo, tanto mais que é conhecida a preferência do Presidente da República pela estabilidade política e pelo cumprimento das legislaturas e pelo entendimento das eleições antecipadas como último recurso.
Há, porém, três dificuldades não despiciendas nessa opção. Primeiro, a recondução da coligação no poder significaria um refrescamento da legitimidade governativa quando aquela acaba de sofrer um forte revés eleitoral, indubitavelmente devido ao descontentamento social em relação ao Governo. Ora, uma coisa é não pôr em causa a subsistência do governo, outra coisa é nomear um novo governo depois da demissão do primeiro-ministro, que talvez se ficou a dever muito justamente a essa derrota. Segundo, a menor autoridade e legitimidade política de qualquer sucessor na chefia do governo (sem falar no patente défice de credibilidade do candidato que se perfila para o cargo) tornará esta uma solução ainda mais frágil do que o desgastado governo cessante. Terceiro, a mais que provável mudança de orientação em duas áreas básicas da governação (consolidação das finanças públicas e política europeia) retira um dos pressupostos essenciais da vantagem da continuidade governativa. Afinal, não seria somente um novo governo, mas também uma muito diferente política.
Ou seja, nas circunstâncias existentes, um segundo governo da coligação pode bem ser uma solução altamente instável e controversa, desde logo pela contestação da sua legitimidade política. Por isso o dilema do Presidente da República pode bem ser este (para além da própria aceitabilidade de uma personalidade como Santana Lopes à frente do governo): uma solução no quadro parlamentar existente que afinal não oferece suficientes garantias de estabilidade (pelo contrário); ou o recurso a eleições antecipadas esperando uma subsequente solução governativa mais forte e mais duradoura, mas também sem nenhumas garantias de que assim seja. Por mais ponderada que seja a sua decisão expor-se-á facilmente à acusação de favorecimento seja do governo seja da oposição.
Durão Barroso devia envergonhar-se da situação em que a sua imprevidência política lançou o país.

(Público, Terça-feira, 29 de Junho de 2004)

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