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9 de setembro de 2004

A derrota do interesse público 

Contrariamente ao que se supõe, os portugueses adoram consensos. Se fosse por nós, escolheríamos sempre governos corajosos e populares, indiferentes aos jogos de interesses alheios e seguros de uma vontade colectiva onde todos os bons sentimentos se reconheceriam. Seria fácil pormo-nos todos de acordo quanto a uma agenda de medidas governamentais ou a um caderno político de encargos. Todos sentimos os males da nação e os seus efeitos funestos, partilhamos as mesmas frustrações, as mesmas perplexidades e até as mesmas astúcias. Conhecemos o sistema por dentro e por fora, sabemos das suas lacunas e imperfeições e temos ideias. Então o que nos tolhe os movimentos? O cansaço, os interesses instalados, as restrições financeiras, um vírus desconhecido, a tentação pelo abismo?

Certos agentes perniciosos são facilmente identificáveis, embora difíceis de exterminar. Por exemplo, o desperdício de trezentos milhões de contos na compra de submarinos só pode ter uma explicação - o vírus intermediário. Nenhum português, inclusive do meio castrense, consegue alinhar duas razões inteligíveis em favor desta incrível operação subaquática. O resultado final será mais uma vitória do vírus e da unidade de submarinos da nossa marinha de guerra sobre a sensatez e o interesse público.

O fenómeno boticário é outro dos que não exigem um grande trabalho de pesquisa na detecção dos agentes de bloqueio. O absurdo e imoral condicionamento do número de farmácias e a proibição da venda livre de medicamentos que não careçam de receita médica são verdadeiros atentados aos interesses dos consumidores, unicamente explicáveis pelos meios de pressão desde sempre utilizados sobre os governos pela poderosa associação dos farmacêuticos (a ANF). É que, sem a sua prestimosa colaboração, as contas da saúde não aguentam?O resultado é o sabido: vitória clara da ANF e dos boticários sobre o interesse público.

No ordenamento e qualificação do território, é a conjugação dos interesses financeiros das autarquias com a máquina trituradora do betão e os seus lucros fáceis que continua a levar de vencida o direito dos portugueses a viverem melhor. O interesse colectivo está no planeamento urbanístico cuidado, na preservação da qualidade ambiental e arquitectónica, na elevação dos níveis de bem-estar, não nos bolsos dos empreiteiros. Para inverter a situação, seria necessária uma dose de cavalo de coragem e clarividência, cerceando as tentativas de revisão de PDM movidas pelo simples jogo da bisca imobiliária e impedindo novos licenciamentos nas orlas costeiras e noutras áreas protegidas. Ao mesmo tempo, impõem-se novas regras para o financiamento das autarquias, baseadas em critérios cristalinos de serviço aos cidadãos e aos agentes económicos sérios, em vez de no metro cúbico de cimento. Até lá, os actores do imobiliário continuarão a ser os donos da bola, dos estádios e das secretarias. Baterão o interesse público por cinco a zero (um golo por cada partido com representação parlamentar) em todos os jogos, ano após ano.

A reforma da administração pública é porventura o melhor exemplo de consensualidade cristã do nosso rectângulo. Todos convergem na causa, todos divergem na aproximação. Não é caso para menos. Setecentos mil funcionários públicos são um número suficientemente esmagador para fazer vacilar o mais sério dos políticos. Depois, há a complexidade da sua gestão, os três milhares e meio de organismos públicos, a sua máquina dispendiosa e perra, os seus recursos simultaneamente escassos e excessivos, em contraponto com a gritante necessidade de modernização dos serviços e de diminuição drástica dos seus custos. Esta será certamente a mais dura das batalhas a travar pelos dirigentes políticos que prezem a causa pública.
Da saúde à educação, da administração da justiça à gestão do território, os combates do futuro passarão seguramente pela visão estratégica, pela competência e pela hierarquização consistente de prioridades. Quero pensar que a retórica oca e inconsequente pouco contará nos destinos colectivos e que os eleitorados não se deixarão ludibriar pelas propostas fáceis e imediatas. Quero pensar que as atitudes patrióticas e solidárias não se ficarão pelo acessório e ousarão enfrentar o essencial. Quero pensar que as gerações futuras terão orgulho em sentir-se portuguesas.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 9 de Setembro de 2004

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