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17 de setembro de 2004

Para que servirá Matosinhos?  

Por Vicente Jorge Silva

Conheci Narciso Miranda e Manuel Seabra há mais de dez anos. Tinham-me convidado para jantar na casa de chá desenhada por Siza Vieira em Leça da Palmeira e que é, para mim, uma das obras mais luminosas do arquitecto portuense.

Tempos antes, Seabra, então responsável pelo pelouro da Cultura da Câmara de Matosinhos, desafiara-me para uma palestra na sede do concelho, integrada numa série de conferências promovidas pelo município. O meu tema seria, obviamente, a comunicação social. Um amigo comum fizera-me uma apresentação extremamente lisonjeira de Manuel Seabra e, durante o jantar, tive ocasião de confirmá-la: tratava-se de um homem informado, sensível e culto, cuja imagem contrastava com a que, já então, era colada a Narciso Miranda, paradigma do cacique nortenho por excelência.

A verdade, porém, é que nesse primeiro encontro senti-me tentado a ver Narciso por um prisma mais amável: não só se me revelou aí um excelente conversador, arguto e inteligente na argumentação, contrariando algumas advertências que me haviam feito acerca da sua vulgaridade, como me pareceu evidente e genuína a cumplicidade que existia entre ele e Manuel Seabra. Tudo indicava que eram dois homens que representavam papeis distintos e complementares e que os assumiam com gosto, sem uma sombra de deslealdade e conflito: Narciso como o presidente pragmático e populista que fazia andar as coisas do dia-a-dia e Seabra como o intelectual que se encarregava de dar um "suplemento de alma" cultural às actividades da câmara (recordo-me, além das tais "conferências de Matosinhos", de concertos de jazz com periodicidade regular).

Após esta agradável surpresa inicial, aconteceu outra: foi quando, depois do jantar na casa de chá de Siza, entrei pela primeira vez no edifício da Câmara onde iria fazer a minha palestra. Após um deslumbramento arquitectónico, seguiu-se outro: nunca tinha visto - e não voltei a ver depois - um exemplo tão belo e inspirado de arquitectura moderna na nova sede de um município português. Era uma marca patrimonial que deveria funcionar como padrão de qualidade e cultura a seguir no resto do país, uma referência para Matosinhos e para toda a região nortenha, onde já nessa altura cresciam como uma maldição os mais aberrantes atentados arquitectónicos e urbanísticos. Muito justamente, o arquitecto Alcino Soutinho, autor do projecto, foi galardoado com o Prémio Pessoa por um júri a que tive a felicidade de pertencer.

Conto esta história porque me marcou pessoalmente - e porque, à distância dos anos e em face daquilo que hoje sabemos, ela ganhou para mim, retrospectivamente, uma dimensão de pesadelo sobre a natureza precária e ilusória das coisas e dos homens. Por causa dessa noite em Matosinhos, relativizei durante largo tempo as acusações de caciquismo de que, repetidamente, era alvo Narciso Miranda. Um homem que tinha associado o seu nome a uma obra tão excepcional de arquitectura contemporânea - e tão singular nos edifícios públicos nacionais - justificava sem dúvida alguma complacência.

Não escapei, é certo, ao sarcasmo de alguns amigos mais familiarizados com os meandros políticos nortenhos. Mas confesso que, apesar de tudo o que desde então escrevi acerca dos casos de caciquismo autárquico em que Narciso aparecia como uma das personagens incontornáveis, sempre condescendi em atribuir-lhe algum benefício da dúvida. Pelo menos dera carta branca a Alcino Soutinho para desenhar a mais bonita Câmara moderna do país, enquanto outros como ele só edificavam horrores à sua pífia posteridade. E, pelo menos também, tinha um colaborador próximo com a qualidade e cultura de Manuel Seabra, com o qual parecia manter então uma frutuosa relação de cumplicidade.

Se algum vidente predestinasse, nessa noite já longínqua de Matosinhos, o que iria acontecer mais de uma década depois envolvendo estas duas personagens, talvez eu tivesse lançado uma gargalhada de incredulidade. Sim, claro, seria capaz de admitir que Narciso, instalado na sua condição de dinossauro autárquico e barão do PS portuense, mutiplicaria as mais variadas tropelias para sustentar o seu poder (esse poder que aos meus olhos poderia afigurar-se provinciano e mesquinho, mas que aos olhos dele representava o espaço possível da afirmação da sua própria importância pessoal como pequenino rei de Matosinhos e candidato a vice-rei do Norte).

Em contrapartida, o que eu não imaginava de todo era que um homem como Manuel Seabra, que me parecia ter outra visão - diria: mais cosmopolita, incomparavelmente mais aberta ao mundo para além das estreitas fronteiras de Matosinhos e da politiquice local - acabasse por revelar-se como uma espécie de criatura de Frankenstein, finalmente revoltado contra o seu presumível criador. Mais: atendendo às minhas expectativas acerca de uma e outra personagem, o que fiquei a saber de Seabra depois do caso que precedeu a morte de Sousa Franco, inspirou-me um misto de estupefacção, indignação e náusea.

Como é que um homem com a formação intelectual e cultural de Seabra - dando por adquirido que eu não fora vítima de um erro de análise próximo da alucinação quando o conheci - reduz o seu horizonte de vida a uma repugnante disputa caceteira pelo poder em Matosinhos? E como foi possível, após os incidentes na lota no dia em que Sousa Franco a visitou, que nem Narciso Miranda nem sobretudo Manuel Seabra manifestassem o menor sobressalto de consciência que se exige a qualquer ser humano minimamente civilizado quando se confronta com as consequências irreparáveis e trágicas do seu comportamento?
Que é que arrastou dois homens, aparentemente amigos, cúmplices e complementares há apenas uma década, para um ódio tão cego, implacável e irracional por causa de uma notoriedade concelhia - ódio que, muito presumivelmente, custou a vida a um cidadão inocente que se empenhara numa luta política nobre mas mortalmente quixotesca? Que homens são estes que não hesitaram colocar em pé de guerra as suas tropas de choque por causa de risíveis rivalidades locais, manipulando os instintos mais baixos da populaça a soldo, e que, depois de tudo, ainda têm a desfaçatez de se considerarem injustiçados?
É suposto conhecermos alguns motivos que estiveram na origem desse ódio desenfreado entre Narciso e Seabra: o primeiro, depois de uma passagem efémera e frustrante por um cargo menor num Governo de Guterres, decidiu retomar a presidência de Matosinhos que o segundo, entretanto, ocupara. Mas é precisamente a insignificância do que estava em causa, esse horizonte do poder confinado a Matosinhos, que torna esta história insuportavelmente exemplar. Não que o poder com P grande, o poder com dimensão shakespeareana, produza situações moralmente mais aceitáveis. Só que esse tem, pelo menos, uma escala onde se plasmam grandes tragédias. Aqui, o trágico é o ridículo da pequenez provinciana e sórdida que conduz os homens à miséria moral mais chã, a de um caciquismo mortífero e eventualmente assassino.

Quando agora recordo o episódio de há dez anos em Matosinhos, interrogo-me como é possível que os dois homens com quem então convivi se tenham transformado em personagens paradigmáticas do que a vida política e partidária tem de mais doentio e irracional em Portugal, essa mancha que cobre de vergonha o regime democrático. Não basta, por isso, que Narciso Miranda e Manuel Seabra tenham sido justamente impedidos de voltar a candidatar-se a cargos autárquicos pelo partido de que são militantes. Não chega extirpar um cancro se as condições propícias à multiplicação das metástases não forem sistematicamente prevenidas e combatidas. Enquanto a irresponsabilidade, a impunidade e a selvajaria da luta pelo poder estiverem deixadas à rédea solta, sem draconianos impedimentos legais ao exercício dos mandatos políticos que pervertam a normalidade democrática, o exemplo de Matosinhos terá servido para quase nada.

(Diário Económico, 6ª feira, 17 de Setembro de 2004)

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