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28 de outubro de 2004

Nada de novo na frente mediática 

O caso Marcelo e a sitcom da cabala mediática tiveram três efeitos benéficos. Puseram a nu as relações de influência entre o poder e os media, trouxeram para a praça pública temas importantes para a qualidade da democracia, como a concentração empresarial e o pluralismo, e permitiram ainda que a Alta Autoridade para a Comunicação Social (AACS) fizesse uma despedida honrosa, para a fotografia, de uma vida de desventuras. Em breve a borrasca passará. Marcelo regressará aos ecrãs, Gomes da Silva será silenciado, o Diário de Notícias conhecerá o seu futuro director e a construção da nova Autoridade para a Comunicação Social estará em fase de acabamentos. Verificaremos então que se cumpriu um velho preceito da política, o que diz que é necessário mudar alguma coisa para tudo ficar como dantes.

Na origem de muitos enganos está a presunção de que o sector da comunicação social é quimicamente diferente das restantes indústrias. Existe entre nós uma noção bondosa, de tradição francesa, segundo a qual o negócio dos media deve ser encarado como uma actividade imune aos malefícios da economia e dos seus jogos de interesses. Para muitos, a pureza dos princípios e o pluralismo informativo, enquanto valores de referência, deveriam sempre primar sobre a dimensão rasteira dos números e dos indicadores de rendibilidade, num combate de peito aberto pelas bandeiras da cidadania e da liberdade de expressão contra o exército dos interesses materiais. Wake up to reality. No mundo civilizado, contam-se pelos dedos de uma só mão os jornais e os canais de televisão de média ou grande audiência que permaneçam independentes dos dinheiros dos grandes grupos económicos. E nenhum, rigorosamente nenhum, poderá afirmar sem mentir que nunca cedeu às influências editoriais dos patrões ou que nunca salpicou de água-benta certas notícias menos agradáveis a seu respeito. Quem pretender ignorar esta realidade óbvia está a lutar contra moinhos de vento.

A boa notícia é que não existe qualquer evidência de que a comunicação social dos bons velhos tempos analógicos era mais isenta, mais plural ou mais rigorosa do que a de hoje. Apesar dos riscos de uma excessiva concentração empresarial, do domínio do gosto popular sobre a informação séria e da ausência de regulação capaz, prefiro claramente os jornais e os canais de televisão de hoje aos de há dez, vinte ou trinta anos. Já me habituei à ideia de que as administrações da Media Capital, da Impresa, da PT, da Cofina e da RTP continuarão a receber telefonemas diários das mais variadas proveniências e grupos de interesses, exprimindo queixas e exercendo pressões. Seria bem melhor que assim não fosse, mas é a vida. À cautela, recorra-se ao zapping informativo. Hoje, há um amplo leque de escolhas ao nosso dispor no telecomando da televisão e no teclado do computador. E esta é uma excelente notícia.

Já do lado da regulação, não são de esperar mudanças sensíveis. É pena, porque a última revisão constitucional adequava-se à ideia de uma entidade reguladora consistente, moderna e actuante. O projecto-lei ainda não viu a luz do dia, mas as principais pontas do véu têm vindo a ser suficientemente levantadas para se poder fazer um exercício de antecipação. Nada de essencial vai mudar. Nem sei mesmo se o ridículo qualificativo de "alta" para a autoridade reguladora não será mantido. Arrisco uma previsão: a nova entidade terá exactamente o mesmo âmbito de actuação (circunscrito às questões imateriais dos conteúdos), a mesma filosofia e princípios inspiradores, a mesma cartilha deontológica, a mesma forma de escolha dos dirigentes, a mesma postura geostacionária, a mesma falta de meios, a mesma ineficácia. Só não serão as mesmas pessoas porque o elenco directivo será reduzido dos actuais onze membros para cinco. Haverá um conselho consultivo formado por alguns especialistas e uma multidão de representantes da sociedade civil e das forças vivas. Produzirá anualmente um interessante documento de reflexão e exprimirá aqui e ali algumas preocupações gerais, com a necessária elevação e distanciamento do mercado, como se impõe em tão nobre missão.

in Jornal de Negócios, 28 de Outubro de 2004

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