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7 de outubro de 2004

Reformas & Reformas, Lda. 

Se tudo o que os políticos nos contam fosse verdade, Portugal seria o recordista mundial de reformas. Não, não me refiro às dos gestores da Caixa Geral de Depósitos, mas sim às colectivas, às estruturais, àquelas que supostamente provocam mudanças profundas no funcionamento dos sistemas públicos ou dos mercados. Quanta reforma anunciada! Entre Cavaco Silva, António Guterres, Durão Barroso e Santana Lopes, os dedos das minhas duas mãos não chegam para contabilizar o número de "reformas" encetadas ou prometidas. Porque será então que não nos lembramos de nenhuma?

A primeira razão é a vulgarização do termo. O mais pequeno retoque legislativo é rapidamente apelidado de reforma, tal a ânsia reformista dos analistas. Recordo-me de um ministro do governo anterior que chamava de reformas a todos os seus actos administrativos, incluindo os despachos correntes. À sua conta, a actual legislatura contaria já com um registo de algumas centenas. Veja-se a ligeireza com que as recentes alterações à lei do arrendamento e a introdução de portagens nas SCUT foram já elevadas à condição de "reformas". A primeira está condenada, tal como as que a antecederam, a só produzir os efeitos que a curva biológica dos inquilinos permitir. Não haja ilusões - nada de significativo mudará no mercado do arrendamento em Portugal. Só mesmo o tempo se encarregará de reformar paulatinamente o sistema.

Quanto às SCUT, é óbvio que se trata de uma medida ditada por razões puramente financeiras, por mais que os seus proponentes se esforcem em justificá-la à luz do conveniente princípio do utilizador-pagador. Em síntese, umas centenas de milhares de automobilistas, coisa pouca, vão passar a pagar o que dantes era gratuito, para felicidade dos pastores transmontanos que, como é sabido, não precisam de auto-estradas para se deslocarem. Percebem-se as dificuldades da tesouraria pública e o argumento singelo da necessidade, mas já não há paciência para as falsas motivações filosóficas desta "reforma".

Porém, a principal causa desta paradoxal combinação entre apetência e amnésia reformista tem provavelmente uma explicação mais profunda do que as liberalidades semânticas. Talvez não tenha mesmo havido reformas, quando muito mudanças incrementais. À pergunta "quais as reformas que retém da governação Cavaco Silva?", estou certo que a grande maioria dos portugueses responderia com um encolher de ombros; dos restantes, nove em dez falariam da "reforma fiscal". Ora se, por definição, uma reforma deve produzir efeitos profundos e duráveis, como se compreende a necessidade de uma nova versão, pouco tempo depois, com António Guterres, e as sucessivas correcções introduzidas pela actual maioria? E como se explica que o sistema fiscal "reformado" seja hoje tão ou mais ineficiente e injusto do que no passado? Se o período de referência fosse o da governação PS, a memória reformista dos portugueses não se revelaria certamente mais pródiga em recordações. Alguns destacariam a introdução do Rendimento Mínimo Garantido, outros o ensino pré-primário, a maioria nada. E dos dois anos de Durão Barroso? Um código do trabalho periclitante? Ou a "reforma da Administração Pública", tal como foi pomposamente anunciada quando uma diligente secretária de Estado se lembrou de lançar uma proposta de grelha de avaliação de desempenho dos quadros da função pública?

A moral que alguns espíritos mais perversos poderão retirar desta sucessão de equívocos é que não há volta a dar a este Portugal, pelo que resta desconfiar de todos os arautos reformistas e fazer pela vida. Que teremos cada vez mais de fazer pela vida, não tenho a menor dúvida. Mas continuo a acreditar na capacidade dos portugueses para transformarem as suas angústias em ambições. As reformas são necessárias e são possíveis, desde que sejam concebidas e realizadas com método. Não podem ser meras peças formais, esteticamente apelativas e bem embaladas, mas desligadas do terreno e da complexidade orgânica da malha pública. Nos países da OCDE, os melhores exemplos de mudança organizacional nos serviços do Estado - as verdadeiras reformas - provêm de experiências de modernização profunda e forçada de certos sub-sistemas públicos, cuidadosamente escolhidos para poderem vir a criar um forte efeito multiplicador noutras áreas. O segredo parece estar exactamente aí - na aproximação selectivamente radical -, por oposição aos pequenos passos exasperantes e aos big bangs "reformistas" para analista ver.

Luís Nazaré, in Jornal de Negócios, 7 de Outubro de 2004

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