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24 de novembro de 2004

Constituição Europeia e "Europa Social" 

Por Vital Moreira

Uma das preocupações de esquerda em relação à integração europeia tem sido desde há muito a questão das políticas sociais. Nascida originariamente com objectivos essencialmente económicos, no sentido da criação de um "mercado comum" assente na livre concorrência, só mais tarde é que a Comunidade Europeia foi incorporando uma componente social, compreendendo políticas de emprego, garantias sociais, protecção dos trabalhadores, etc. Não admira por isso que a questão social seja suscitada de novo a propósito do tratado da Constituição europeia, que está neste momento em vias de ratificação nos Estados-membros, em vários deles com a realização de referendos, como sucede entre nós. A questão é a seguinte: a Constituição europeia é mais favorável ou desfavorável para o "modelo social europeu"?

Foi partindo de um ponto de vista crítico quanto a este ponto que em França uma corrente do PS liderada por Laurent Fabius desencadeou uma campanha contra a Constituição europeia, que vai culminar no próximo dia 1 de Dezembro com um referendo interno no partido. Até agora não se manifestou tal divisão nos demais partidos socialistas europeus, tradicionalmente europeístas e em geral alinhados no apoio ao tratado constitucional. Mas, no "Expresso" de sábado passado, Manuel Alegre perguntava "se a eventual constitucionalização de preceitos que configuram um programa neoliberal [referia-se ao capítulo das políticas económicas] não poderá vir a pôr em causa o próprio modelo social europeu". Acrescentando que "a Europa não é só o Banco Central, mas um projecto de cidadania, um projecto democrático, político, social e cultural", concluía ser nesta perspectiva "que se deve discutir e votar o tratado, pondo o acento tónico na coesão, em políticas de emprego e, sobretudo, na consolidação e renovação da democracia e do modelo social europeu".

Mas não existe fundamento para a censura implícita nesta análise. O tratado constitucional europeu não é mais liberal do que os actuais tratados e é seguramente mais social. De facto, o tal capítulo sobre as políticas económicas não significa nenhum recuo, sendo uma pura transcrição do actual tratado da CE nessa matéria e que provém na generalidade do Tratado de Roma de 1957, sendo por isso um tanto forçado falar num "programa neoliberal" anterior ao neoliberalismo dos anos 80/90. De resto, a componente liberal da economia de mercado de livre concorrência tem vindo a ser progressivamente contrabalançada com uma componente social, que teve no Tratado de Amesterdão (1997) uma das suas mais importantes expressões.

O aspecto decisivo está em que, contrariamente ao que se insinua, o novo tratado constitucional favorece políticas menos "neoliberais" e mais sociais do que os tratados vigentes (e é com eles que deve ser feita a comparação). Por três razões, pelo menos.

Em primeiro lugar, as políticas da UE devem ser agora prosseguidas à luz dos novos princípios fundamentais da nova Constituição europeia (se ela for para a frente), onde se contam expressamente os objectivos de "justiça social", de "progresso social", de "pleno emprego", de "desenvolvimento sustentável", de "combate contra a exclusão social", entre outros (art. I-3º). Não é por acaso que no novo texto o modelo económico da UE passa a ser designado por "economia social de mercado", uma antiga expressão de origem alemã que pretende justamente marcar a diferença entre o chamado "capitalismo renano", que incorpora o modelo social europeu, e o capitalismo liberal de matriz anglo-saxónica, especialmente o norte-americano. A não ser que se pretenda afastar a economia de mercado, em favor de qualquer economia "socialista" planificada, a nova noção constitui um evidente progresso sob o ponto de vista da "Europa social".

Em segundo lugar, o novo tratado constitucional incorpora uma cláusula muito mais forte do que a actual no que respeita aos chamados "serviços de interesse económico geral" (art. II-96 e III-122), ou seja, os tradicionais serviços básicos que devem ser assegurados a todos pelo Estado, desde a água e a energia até à educação e aos cuidados de saúde. Eles eram mencionados de passagem no Tratado de Roma, como limite à aplicação das regras da concorrência. Mais tarde, no Tratado de Amesterdão, os serviços de interesse económico geral foram incluídos entre os princípios fundamentais da UE. Desse modo, a liberalização dos serviços públicos, que tem vindo a ter lugar desde os anos 80, tem sido acompanhada da salvaguarda de "obrigações de serviço público" que preservem a sua contribuição para a coesão social e territorial. Os novos preceitos do tratado constitucional darão fundamento para progressos nessa área, incluindo uma possível lei-quadro, no sentido das conclusões do "livro branco" publicado há poucos meses pela Comissão Europeia sobre o assunto.

Por último, mas ainda mais importante, não pode esquecer-se a "constitucionalização" da Carta de Direitos Fundamentais, onde se inclui uma importante lista de direitos económicos, sociais e culturais - a maior parte deles proveniente da Carta Social Europeia - que não constam dos tratados em vigor e que doravante passam a reger a actividade legislativa e as políticas públicas da UE enunciada na referida Parte III. Desse modo, a Constituição europeia passará a reconhecer mais direitos sociais do que as constituições de muitos dos Estados-membros.

Além dos instrumentos legislativos e políticos gerais, o tratado refere alguns instrumentos específicos para definir e implementar as políticas sociais, como, por exemplo, o reconhecimento do "diálogo social tripartido" para o crescimento e o emprego (art. I-48º) e a coordenação comunitária das políticas económicas, bem como das políticas de emprego e das políticas sociais (art. I- 15º).

Por conseguinte, com o novo tratado não se perde nada quanto ao modelo social europeu, antes se ganha uma considerável mais-valia. Ele deixa maior margem para políticas sociais progressistas do que os tratados vigentes (que apesar de tudo já permitiram as políticas de um Jacques Delors, por exemplo). De resto, a UE que resulta do novo tratado é muito menos uma simples organização de mercado e mais um "projecto democrático, político, social e cultural" (que Manuel Alegre reclama) do que actualmente.

Evidentemente, o tratado constitucional não pode ser um receituário de políticas de esquerda ou de direita, mas sim um espaço aberto a várias orientações políticas, mais liberais ou mais sociais, mais à esquerda ou mais à direita, balizado pelos grandes princípios e pelos direitos fundamentais. O que se pode dizer é que o tratado constitucional institui barreiras mais consistentes a uma deriva neoliberal destinada a destruir o modelo social europeu e proporciona melhores condições para a sua defesa. O que ele não pode assegurar, naturalmente, são as maiorias e os governos necessários para as levar a cabo. Isso depende dos cidadãos, quanto aos seus governos e nas eleições para o Parlamento Europeu.

Blogposts (www.causa-nossa.blogspot.com)

1. A controversa formulação escolhida para a pergunta do referendo sobre o tratado constitucional da UE suscitou críticas generalizadas e não só entre os esperados partidários do "não". Mas há reacções excessivas e puramente demagógicas, como o apelo ao boicote do referendo ou a contestação da sua legitimidade. Por mais questionável que seja a pergunta concreta, que sempre dirá pouco ao cidadão comum, toda a gente sabe que o que está em causa politicamente é saber quem é a favor ou contra a Constituição europeia. Desde que o referendo a mencione expressamente, como sucede, não se pode sequer dizer que ele não dá margem para tomar posição clara nessa opção.

2. O que está em causa no referendo sobre a Constituição europeia sob um ponto de vista de esquerda (e o mesmo vale para a direita) não é optar entre o novo tratado constitucional e uma outra hipotética alternativa "verdadeiramente socialista", mas sim entre aquele e os tratados vigentes. Do que se trata de saber é se com o tratado constitucional as coisas melhoram ou não em relação à situação existente.

(Público, Terça-feira, 23 de Novembro de 2004)

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