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29 de maio de 2005

Ordem no caos? 

Por Vital Moreira

Não deve haver um país tão caótico na sua divisão territorial como Portugal. Na generalidade dos países europeus, as circunscrições locais "encaixam" nas regionais e as áreas territoriais das autarquias locais e regionais coincidem com as da administração local e regional do Estado, respectivamente. Entre nós, porém, mesmo tomando em consideração somente a divisão administrativa e deixando de lado os casos especiais, como a administração militar, são numerosas as diferentes configurações territoriais a nível da administração regional e sub-regional do Estado.
Não está em causa somente a legibilidade da geografia administrativa do país, mas também a eficiência da administração pública e a satisfação dos interesses dos seus utentes. A falta de harmonização da divisão territorial e a multiplicidade de circunscrições territoriais dificultam a desconcentração da administração do Estado, impedem uma eficaz coordenação transversal dos serviços estaduais a nível regional e impedem qualquer pensamento convincente sobre a instituição das regiões administrativas.
São três as dificuldades principais: primeiro, a desarmonia entre a divisão distrital (18 distritos) e a divisão das cinco regiões-plano que servem de base nomeadamente às comissões de coordenação e desenvolvimento regional (CCDR); segundo, a falta de critério na separação entre os serviços administrativos que têm por base territorial o distrito e aqueles que têm por base a região-plano; terceiro, o facto de mesmo a nível regional haver um dualismo entre os serviços que têm por base as cinco regiões-plano (NUT II) e os que assentam em circunscrições territoriais compostas por agrupamentos de distritos, mesmo quando também são em número de cinco.
Em 2001, no segundo Governo Guterres, foi adoptada em resolução do Conselho de Ministros uma solução para os dois últimos problemas apontados. Assim, por um lado, estabeleceu-se um critério de separação entre os serviços de base distrital (segurança, protecção civil, administração fiscal) e os serviços de base regional (desenvolvimento e planeamento regional, ordenamento do território, ambiente, administração económica, social e cultural, etc.); e, por outro lado, determinou-se que a circunscrição territorial da administração regional do Estado deveria ser a das regiões-plano e não o agrupamento de distritos.
Todavia, com a queda prematura desse Governo, tal rearranjo da geografia da administração territorial não foi implementada e os governos do PSD-CDS deixaram-na cair, pelo que tudo ficou na mesma.
Pelo contrário, ocorreram entretanto dois factores que agravaram a incongruência da nossa divisão territorial. O primeiro foi a "oportunista" redelimitação da região-plano de Lisboa e Vale do Tejo (por causa do acesso aos fundos da UE), que perdeu uma parte considerável da sua área para a região centro e outra parte para o Alentejo, esticando a primeira até às portas de Lisboa e estendendo a segunda até ao limite do distrito de Leiria. O segundo factor que ajudou a agravar a descoordenação da divisão territorial do país consistiu na criação das novas entidades intermunicipais e "metropolitanas", sem terem de respeitar ao menos as fronteiras das regiões-plano.
O programa do actual Governo retoma expressamente a referida orientação de 2001, assumindo as regiões-plano como base territorial da administração regional do Estado, aliás no contexto de uma recuperação do projecto de criação das regiões administrativas (mas não nesta legislatura), igualmente com base na mesma divisão territorial. Sem duvidar da vontade política de levar a cabo essa parte da reforma administrativa, convém no entanto ter em conta as resistências que ela suscitará, a começar pela inércia e a acabar na reivindicação da "especificidade" de cada ministério quanto à organização dos seus serviços periféricos. Na falta de um forte impulso político, impondo a definição concreta das mudanças a efectuar, ministério a ministério, bem como um calendário para a sua execução, é de temer que tudo acabe por ficar na mesma, ou quase.
Mas ainda que as duas referidas reformas fossem realizadas - ou seja, a separação criteriosa entre os serviços desconcentrados de base distrital e os de base regional, bem como a adopção das regiões-plano como base da administração regional do Estado -, continuará a subsistir o principal factor de irracionalidade da nossa administração territorial, que é a discrepância entre as fronteiras dos distritos e as das regiões-plano. De facto, há vários distritos repartidos por duas regiões. Os distritos de Aveiro, Viseu e Guarda, maioritariamente integrados na região centro, têm alguns municípios na região norte; o Norte do distrito de Lisboa encontra-se agora integrado na região centro (desde a redelimitação de 2002); o distrito de Santarém, antes integrado na região de Lisboa e Vale do Tejo, acha-se agora repartido pelas regiões do centro e do Alentejo; e o Sul do distrito de Setúbal está desde sempre integrado na região do Alentejo. Só o Algarve não coloca tal problema, por coincidir inteiramente com um único distrito (Faro).
Não se pode subestimar a disfuncionalidade desta dicrepância territorial, mesmo havendo um claro critério de separação entre os serviços periféricos de base distrital e os de base regional. Por um lado, os distritos e as regiões-plano (NUT II) obedecem a diferentes filosofias da divisão administrativa do território, sendo os primeiros, mais arcaicos, vocacionados para o controlo governamental sobre o território e a unidade administrativa do país, enquanto as segundas, muito mais modernas, nasceram vocacionadas para o planeamento e o desenvolvimento regional, sendo depois cooptadas como base territorial da aplicação dos programas comunitários europeus de promoção da coesão económica, social e territorial. Por outro lado, porém, é impossível conviver pacificamente com uma acentuada discrepância das duas divisões territoriais, visto que os distritos deveriam ser a base natural para a "subdesconcentração" dos serviços regionais, enquanto as regiões deveriam ser a referência territorial óbvia para a coordenação dos serviços periféricos de base distrital.
Embora implicitamente prevista na Constituição, nada indica que a extinção dos distritos esteja para já, até porque a lei fundamental parece fazer depender tal eventualidade da criação das regiões administrativas, que continua adiada. Seja como for, uma solução alternativa deveria assentar na harmonização das duas divisões administrativas, fazendo convergir as fronteiras dos distritos com as das regiões-plano, transferindo para os correspondentes distritos adjacentes as áreas que pertençam a região diferente daquela que integra a maior parte da área dos distritos repartidos por mais do que uma região. Mas essa operação de redelimitação dos distritos não deixará de levantar inúmeras resistências e dificuldades, aliás agravadas pela recente divisão do distrito de Santarém entre as regiões do Centro e do Alentejo, bem como do distrito de Lisboa entre a respectiva região e a do Centro. Isto para não falar das dificuldades derivadas do facto de os distritos administrativos serem a base dos círculos eleitorais e da organização territorial dos partidos políticos.
Queira-se reconhecê-lo ou não, o problema dos distritos constitui a principal dificuldade da administração desconcentrada e da organização territorial do Estado. Não é fácil pôr ordem no caos territorial.
(Público, Terça-feira, 24 de Maio de 2005)

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