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4 de julho de 2005

Direitos Adquiridos 

Por Vital Moreira

Segundo o inquérito de opinião pública ontem divulgado no PÚBLICO, enquanto uma maioria dos inquiridos entende que os funcionários públicos têm regalias a mais, os próprios funcionários públicos têm opinião muito diferente: cerca de metade consideram que "têm as regalias que deviam ter" e 25 por cento dizem mesmo que "têm regalias a menos"! É bem verdade que não existe nenhum beneficiário de privilégios que não os ache justíssimos, ou mesmo insuficientes.
Mas a verdade objectiva e evidente para toda a gente é que o regime da função pública confere importantes e valiosas regalias aos funcionários quando comparados com os trabalhadores do sector privado. A principal delas, de valor inestimável e invejável, é a estabilidade vitalícia no emprego, não podendo ser despedidos. A essa somam-se as que respeitam à segurança social - de que continuam a gozar inteiramente os funcionários públicos entrados antes de 1993 -, quer quanto à idade de reforma (60 anos em vez de 65 anos), quer quanto ao valor das pensões, calculadas pela remuneração do fim da carreira e não pelos descontos efectuados, quer ainda quanto ao regime de baixas por doença. Acrescem ainda as regalias no campo da protecção da saúde (conferidas pelo subsistema da ADSE, que custa somente um por cento do vencimento), do tempo de trabalho semanal, das férias, da progressão automática de escalão remuneratório com o simples decurso do tempo (agora suspenso), isto sem falar da falta de uma verdadeiro sistema de avaliação de desempenho e do maior laxismo nas baixas por doença, etc.
Tradicionalmente, o regime mais favorável de que os funcionários usufruíam em matéria de segurança no emprego, de assistência na saúde e de segurança social justificava remunerações mais modestas do que as do sector privado, bem como um regime de dedicação exclusiva à função pública. Nenhuma dessas limitações se aplica hoje em geral. Em muitos casos, o emprego público é mais bem pago do que o equivalente privado. E a regra da incompatibilidade com actividades privadas praticamente deixou de valer, salvo em casos de dedicação exclusiva, remunerada com um suplemento de vencimento. Poucos países há onde a acumulação de empregos públicos com actividades privadas seja tão generalizada, mesmo em caso de evidentes conflitos de interesse, acumulação facilitada pelo regime de autorização tácita, que o Código de Procedimento Administrativo erradamente estabeleceu.
As regalias são ainda maiores no caso dos muitos regimes especiais que proliferaram caoticamente ao longo dos anos, designadamente no que respeita a suplementos remuneratórios (subsídios de toda a ordem), a regimes especiais de pensões de reforma, a cuidados de saúde (os agora famosos subsistemas de saúde da Ministério da Justiça, das forças de segurança e das Forças Armadas), etc. A maior parte das vezes não existe a mínima justificação para tais regimes especiais, salvo a maior capacidade reivindicativa dos respectivos sectores profissionais.
Para "comprar" os seus funcionários, os ministérios foram atribuindo regalias a trouxe-mouxe, criando regimes especiais à margem do regime geral e gerando uma verdadeira selva de sistemas particulares fora de qualquer racionalidade. Em geral trata-se de verdadeiros casos de "autolegislação", preparada pelos sectores interessados e depois carimbada pelos ministros e pelo Governo. Aliás, algumas dessas situações têm origem parlamentar, por via de grupos de deputados oriundos de certos sectores que legislam em seu próprio benefício. Entre os exemplos mais recentes conta-se o conhecido caso dos inspectores do Ministério da Educação.
Uma regra geral é que tais regimes tendem a eternizar-se, passando a ser defendidos como direitos adquiridos que nenhum governo tem a coragem para afrontar. Por exemplo, o Estatuto da Carreira Docente do Ensino Superior estabelece o direito de todo o assistente universitário que se doutora a ser contratado como professor da respectiva universidade, independentemente de concurso, das necessidades desta e mesmo do mérito relativo do doutoramento. O resultado, para além da endogamia docente das nossas universidades, tem sido o superpovoamento de professores em muitas faculdades. Passado mais de um quarto de século, esse abstruso privilégio continua em vigor...
Alguns casos são verdadeiramente escandalosos, particularmente no que se refere ao sistema de pensões de reforma. Porventura o mais intolerável é o dos médicos, que, depois de uma vida em part time no SNS, beneficiando das vantagens da clínica privada, com descontos ínfimos para a segurança social e para a CGA, optam oportunamente pela dedicação exclusiva - muitas vezes só ficticiamente, deixado entregue o consultório a um colaborador fiel - a poucos anos da idade da reforma da função pública, só para terem direito a uma generosa pensão da CGA como médicos em dedicação exclusiva, igual à dos que sempre estiveram nessa condição, que não tem nenhuma relação com os descontos que fizeram e que vai ser paga, em grande parte, pelos contribuintes. Que situações destas tenham podido ser criadas e se mantenham indefinidamente revela bem o peso desses sectores e a complacência governamental com os interesses mais poderosos.
Estas situações só são possíveis porque há condições que as favorecem, designadamente a ausência de uma obrigação de apresentação do impacto financeiro de cada medida legislativa relativa à função pública e de justificação cabal de soluções especiais, bem como a separação entre a gestão da função pública e o Ministério das Finanças, como sucedeu até há pouco. Isto para não falar do peso dos sindicatos em certos sectores da administração pública, nomeadamente no sector da educação. Por vezes, são os próprios ministros, profissionais do sector em causa, que favorecem tais privilégios por razões de solidariedade profissional e corporativa.
O principal obstáculo à revisão das situações de privilégio indevido é constituído pelo argumento dos "direitos adquiridos", entendidos não como direitos individuais, mas sim como direitos da própria profissão a manter o estatuto económico-profissional existente. Trata-se de um evidente abuso do conceito, que nem por isso deixa de ser usado por todos os sectores profissionais, desde os professores aos polícias, desde os militares aos juízes. Infelizmente, o precedente foi estabelecido pela reforma do regime de pensões da função pública do início dos anos 90, que salvaguardou todas as vantagens antecedentes, independentemente da idade e do tempo de serviço.
A questão fundamental é a da sustentabilidade financeira do sector público e das suas regalias. Neste aspecto, há discursos políticos pouco responsáveis. Há dias, um dirigente da oposição de esquerda, justificando a rejeição da ampliação da idade da reforma na função pública, afirmava que a pensão que os respectivos pensionistas recebem é o "dinheiro que descontaram ao longo da vida". Ora, é fácil ver que os descontos até aos 60 anos não dão para sustentar uma pensão equivalente à remuneração dos últimos anos durante mais de dez anos, tendo em conta que a média de vida das pessoas hoje é superior a 70 anos. Se não se prolonga a idade da reforma, aumentando os anos de desconto, como é que se resolve este problema? Aumentando os descontos ou diminuindo as pensões?
É pena que quem contesta a convergência da idade da reforma na função pública para os 65 anos não esclareça esse ponto. Mas é esse em geral o defeito da retórica dos "direitos adquiridos", na peculiar versão latitudinária que ela tem no discurso político-social prevalecente.
(Público, Terça-feira, 28 de Junho de 2005)

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