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16 de outubro de 2005

Irão e proliferação nuclear 

por Ana Gomes

O maior perigo que a comunidade internacional enfrenta é a proliferação de armas de destruição maciça (ADM) e a possibilidade de caírem nas mãos de terroristas. Disse o Secretário-Geral das Nações Unidas no rescaldo da Cimeira de Setembro passado, alarmado com o falhanço no desarmamento.
O caso do Irão espelha a gravidade da crise. O regime iraniano procura adquirir armas nucleares a coberto do direito ao uso pacífico de tecnologia nuclear, previsto no Tratado de Não Proliferação (NPT). Este uso perverso do NPT pode ter como resultado mais uma potência nuclear ilegal. Ou mais uma intervenção militar no Médio Oriente. Em nenhum caso a Humanidade vai dormir mais tranquila. Se ainda dormir...
A Europa - numa demonstração rara de unidade - procura há dois anos convencer o Irão a trocar o programa de enriquecimento de urânio por tecnologia nuclear pacífica. Mas Teerão recomeçou-o em Agosto, quebrando o que tinha acordado com a UE. A 24 de Setembro a Agência Internacional de Energia Atómica (AIEA) confirmou que o Irão estava a violar o NPT, mas adiou a submissão do caso ao Conselho de Segurança da ONU. (E de que valerá tal submissão? É duvidoso que China e Rússia viabilizem sanções e o Irão está habituado a viver sob elas; e pode retaliar na ruptura do abastecimento mundial de petróleo - até já ameaçou Portugal pelo seu voto na AIEA - e no derramamento de mais sangue no Iraque, Israel, Palestina etc.).
O problema não acaba aqui. O NPT estabelece um equilíbrio entre as obrigações das potências nucleares legais em desarmar gradualmente e o direito dos restantes Estados em adquirirem, de forma transparente e legal, tecnologia nuclear para fins civis. Cada sinal por parte da França, Reino Unido, Estados Unidos, China e Rússia de que não querem desarmar nos termos do art.6 do NPT, representa mais uma machadada neste equilíbrio crucial.
Com o unilateralismo que a caracteriza, a Administração Bush recusa ratificar o CTBT (o tratado que proíbe testes nucleares e cuja entrada em vigor é fundamental para o desarmamento nuclear), tem adiado para as calendas uma redução significativa do arsenal nuclear americano e tem investido - apesar da forte oposição dos legisladores Democratas - em novas tecnologias de utilização de armas nucleares. O programa de investigação Robust Nuclear Earth Penetrator do Departamento de Energia desenvolve tecnologia que permita usar armas nucleares para fins convencionais: atingir bunkers no subsolo. Mais: um documento do Pentágono recentemente tornado público procura redefinir a doutrina nuclear dos EUA, baixando a fasquia operacional para o uso da arma mais destrutiva da História; a ser aprovado, introduziria a possibilidade dos EUA usarem a Bomba se houver "um ataque iminente com armas biológicas que só uma arma nuclear pode evitar"; prevê também "ataques contra instalações de adversários... que contenham armas químicas e biológicas ou a estrutura de comando necessária para um adversário executar um ataque de ADMs contra os EUA, os seus aliados e amigos". Por outro lado a US Air Force prossegue planos de colocar armas no espaço, incluindo nucleares e até assume fins "pre-emptive". Os EUA quebram assim vários tabus, nomeadamente o de que a opção nuclear só é legítima num contexto de equilíbrio nuclear e como arma de dissuasão, de último recurso. E quanto à capacidade americana de identificação de ameaças 'iminentes' de ADMs, o Iraque ilustra-a... Em suma, não só não se pode contar com liderança americana no desarmamento, como a Administração Bush se tem empenhado em esfrangalhar os mais fundamentais consensos nesta área.
Onde é que isto leva em relação ao Irão? Pela natureza do regime e pela virulência da retórica anti-americana e anti-israelita, o Irão é um caso especial, mas exemplifica o desequilíbrio entre as exigências que se fazem em relação aos que querem a Bomba e aos que já a têm. Israel, Paquistão e Índia adquiriram a Bomba fora do NPT. Longe de os punir por isso, os EUA são aliados dos primeiros e assinaram recentemente um acordo com a Índia prometendo cooperar no sector nuclear, quebrando assim o compromisso assumido por todos os membros do NPT em não partilhar tecnologia nuclear com países fora do Tratado.
A hipocrisia não ajuda quando é preciso um consenso global, credibilidade e uma estratégia negocial pragmática. Para sair do impasse nas negociações com o Irão com um final aliviante que possa reanimar o NPT, a Europa tem de rever a estratégia:
1. Precisa de convencer os EUA de que têm de se envolver nas negociações com Teerão. Com tropas americanas no Afeganistão e no Iraque, e com o Paquistão e Israel - duas potências nucleares aliadas dos EUA - na vizinhança, dá-se ao Irão razões objectivas de nervosismo. Só os EUA podem convencer os mullahs que, depois do Iraque, não vai ser a vez deles. Recentemente deram, e bem, garantias de segurança à Coreia do Norte, quebrando o impasse com aquele vértice do "Eixo do Mal". Valia a pena pensar em dar garantias de segurança ao Irão antes de este adquirir a Bomba.
2. Precisa de soluções criativas para o programa nuclear do Irão (soluções que também se poderão aplicar a outros países que possuem ou venham possuir a tecnologia, como o Brasil): em vez de insistir com os mullahs para que abandonem todas as capacidades de enriquecimento de urânio, a Europa podia seguir o conselho do International Crisis Group: Teerão manteria um programa de enriquecimento de dimensões reduzidas e rigidamente controladas pela AIEA, ou alternativamente, todas as centrais nucleares iranianas seriam administradas conjuntamente pelo Irão e pela ONU, por exemplo;
3. Finalmente, precisa de embarcar num processo de cooperação económica com o Irão ancorado em condicionalidades claras. Teerão tem que respeitar os direitos humanos e contribuir para a estabilidade do Médio Oriente, nomeadamente no Iraque e na resolução do conflito Israelo-Árabe. A política de ser mais pró-palestiniano que os Palestinianos e de apoiar o Hizb'allah no Líbano cada vez menos se consegue mascarar de solidariedade islâmica.
Nada garante que esta abordagem funcione. Mas, na pior das hipóteses, serviria para unir a comunidade internacional contra um Irão obstinado. Teerão teria muito mais dificuldades em continuar o programa nuclear, não continuaria a dividir as Nações Unidas e a usar o discurso do 'apartheid nuclear' como camuflagem de perigosas ambições nucleares.
Lidar com o Irão implica mais do que salvar ou afundar o NPT: implica o futuro da Humanidade. Qualquer solução a longo prazo para o problema iraniano terá de envolver concessões das potências nucleares, no mínimo o cumprimento das obrigações de desarmamento do NPT. Senão, num futuro próximo proliferarão os países como o Irão, a achar que só a Bomba lhes dá segurança, prestígio e poder.

(Publicado pelo EXPRESSO, 15.10.05)

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