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17 de novembro de 2005

O mais difícil 

Por Vital Moreira

Está na moda, e não só nos círculos neoliberais, condenar o Estado social, como se ele fosse responsável por todos os males nacionais e europeus, desde o fraco crescimento económico e o desemprego até aos recentes tumultos de Paris, passando pela crise das finanças públicas. Muitos antevêem a sua próxima falência, enquanto trabalham activamente para ela. Na realidade, face às indesmentíveis dificuldades, sobretudo de ordem financeira, ninguém minimamente lúcido pode defender a manutenção do statu quo. No entanto, como mostram vários exemplos, desde a Escandinávia à Espanha, o modelo social europeu nem é culpado de tudo o que corre mal, nem está condenado a desaparecer. Ponto é que sejam feitas as reformas apropriadas.
O que designamos como Estado social está longe de ser um modelo único. Pelo contrário, tem diversas variantes, tantas como as suas diferentes origens. De comum sobressai a ideia de que incumbe ao Estado assegurar um mínimo de protecção social a todos e velar pela coesão social. São quatro as vertentes tradicionais do conceito.
A primeira é a protecção contra as situações de carência ou infortúnio (doença, desemprego, invalidez, velhice); as suas principais expressões são os sistemas públicos de saúde e de segurança social. A segunda vertente é assegurar a prestação de serviços considerados essenciais para todos, desde a educação aos serviços básicos, como a água e o saneamento, a energia e os transportes públicos, entre outros. A terceira componente tem a ver com a protecção dos direitos laborais, desde a limitação da jornada de trabalho às férias pagas, desde a segurança no trabalho à proibição de despedimentos arbitrários. O quarto elemento do Estado social diz respeito ao financiamento das despesas públicas por meio de um sistema tributário progressivo, em que os mais ricos pagam proporcionalmente mais do que os mais pobres ou remediados.
O modelo social europeu não tem nacionalidade, sendo o produto de um grande número de contribuições, entre elas o modelo bismarckiano de segurança social e os direitos sociais da Constituição de Weimar (1919); a escola pública, os serviços públicos municipais e as conquistas do Governo da Frente Popular, em França; o sistema nacional de saúde britânico; o estatuto dos trabalhadores italiano; o modelo escandinavo de protecção social e de imposto progressivo do rendimento; etc. Essas diferentes origens justificam também as diferenças mais ou menos profundas que o modelo social europeu revela de país para país, por exemplo os dois modelos de serviço público de saúde, ou seja, o modelo alemão, sustentado num regime de seguros públicos, e o modelo britânico, suportado directamente pelo Orçamento do Estado.
Para além das razões ideológicas, ligadas às ideias da negação do papel do Estado na vida económica e social, há dois argumentos correntes na ofensiva contra o modelo social europeu. Um é de ordem económica, designadamente o argumento da perda de competitividade, por efeito dos altos custos do trabalho e da elevada fiscalidade necessária para manter os gastos públicos inerentes à sustentação dos benefícios sociais. Outro argumento é de ordem financeira, tendo a ver com a ideia de insustentabilidade dos gastos com os serviços públicos (educação, transportes públicos, etc.) e em especial com os sistemas sociais (segurança social e saúde), cujos custos aumentam acima do crescimento económico, sobretudo por efeito da maior longevidade e da menor natalidade. Cada um desses argumentos serviria só por si para justificar o abandono do Estado social.
Contudo, para além das razões ideológicas, os argumentos estão longe de ser convincentes. Por um lado, como mostram vários países europeus, o modelo social não tem sido obstáculo nem para altos níveis de produtividade, nem para um elevado nível de desenvolvimento económico. Por outro lado, as reformas encetadas em diversos países mostram que é possível diminuir sensivelmente os gastos públicos, sem afectar profundamente os sistemas de protecção social e os serviços públicos essenciais. Uma coisa é eliminar regalias injustificáveis, limitar os benefícios de quem menos precisa e reduzir o montante das prestações, ou fazer impender sobre os beneficiários o pagamento de uma contrapartida; outra coisa é eliminar essas prestações ou atacar o seu núcleo essencial.
Infelizmente, os adversários do Estado social não são somente os que se lhe opõem por razões ideológicas ou por interesse de grupo ou de classe. São também aqueles que, em nome da intangibilidade do que está, se opõem a todas as reformas destinadas a corrigir os excessos e a assegurar a sua sustentabilidade financeira. O que se tem passado entre nós, com contestação da elevação da idade de reforma dos funcionários públicos para os 65 anos e com a eliminação de regimes especiais de privilégio na prestação de cuidados de saúde e no regime de segurança social (militares e forças de segurança, área da justiça, etc.) revelou não somente a resistência encarniçada dos grupos privilegiados que deles beneficiavam, mas também o oportunismo da oposição de esquerda que a tem apoiado.
Por vezes, ocorrem oposições verdadeiramente escandalosas, como a que se verificou recentemente na discussão do Orçamento, com a rejeição, por todas as oposições, da direita e de esquerda, da proposta de aproximar o regime fiscal das pensões em relação ao dos rendimentos do trabalho. Por que é que uma pensão de elevado montante, por exemplo de 5000 euros, há-de ter um tratamento fiscal mais favorável do que uma remuneração do mesmo valor? A rejeição desta alteração é especialmente indesculpável no caso das pensões da função pública, que equivalem à remuneração recebida ao tempo da reforma, sem nenhuma relação com os descontos efectuados pelos beneficiários, os quais acabam por ganhar com a reforma.
Uma das formas indirectas mais correntes de atacar o Estado social consiste na diminuição substancial dos impostos, desde modo reduzindo a capacidade financeira do Estado para sustentar os serviços públicos e as prestações sociais. Sempre justificada em nome da competitividade e da diminuição do Estado, a redução da carga fiscal é quase sempre motivada especialmente pelo desejo de desonerar os mais ricos dos seus encargos tributários. Isso pode ser feito tanto de forma directa - como fez Bush nos Estados Unidos -, como de forma menos directa, por exemplo a coberto da ideia da taxa única do imposto de rendimento, como é advogado pelos círculos neoliberais mais radicais. Como é óbvio, uma tal reforma fiscal só poderia ter dois efeitos: por um lado, reduzir as receitas fiscais do Estado; por outro lado, aliviar os impostos dos mais ricos e sobrecarregar os titulares de rendimentos remediados.
É por isso que a posição política mais difícil, mas também a mais corajosa, na actualidade é a dos governos de esquerda que resolvem salvar o Estado social das dificuldades que ele enfrenta e dos riscos que o ameaçam, mediante reformas tendentes a assegurar o seu financiamento sustentado, a reduzir os seus custos e a melhorar a sua eficiência. Atacadas à direita, por serem sempre insuficientes, e à esquerda, por serem sempre ofensivas de "direitos adquiridos" e de "conquistas dos trabalhadores", há mesmo ocasiões de convergência oportunista entre os dois campos, como se tem observado entre nós. Por isso, não é de mais apreciar a determinação do actual Governo para conjugar a necessária disciplina das finanças públicas com a inadiável reforma dos sistemas de protecção social e dos respectivos serviços públicos. Do seu êxito depende a salvagurda do Estado social entre nós.
(Público, terça-feira, 15 de Novembro de 2005)

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