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11 de novembro de 2005

O mal francês 

Por Vital Moreira

O editorial do jornal Le Monde dizia tudo: "Um país que se considera como pátria dos direitos do homem e santuário de um modelo social generoso mostra-se aos olhos de todos incapaz de assegurar condições de vida dignas a jovens franceses cujos avós imigrados contribuíram para os "trinta anos gloriosos" [da II Guerra aos anos 70], mas que não têm tido outro horizonte que desemprego, regressão tribal e racismo."
O pior que poderia suceder perante a onda de violência juvenil e destruição incendiária nos subúrbios franceses será supor que tudo não passa de uma reacção conjuntural de revolta contra um acontecimento infeliz (a morte de dois jovens na fuga a uma perseguição policial) e a reacção desastrada do ministro do Interior Sarkozy perante os primeiros actos de violência, designando como "escumalha" (racaille) os nela envolvidos. Não, infelizmente. Tudo indica que esses acontecimentos foram somente um rastilho que incendiou o barril de pólvora em que se foram transformando os bairros suburbanos em França e noutros países europeus, sob o impacto da imigração, da incapacidade de integração social e cultural, da crise económica e social por que passam esses países e da redução de investimento público na escola, na acção social e na integração comunitária.
Ao contrário dos Estados Unidos e de outros países "novos", desde o início caracterizados pela imigração de diversas origens, pela diversidade e heterogeneidade étnica e cultural e pela capacidade de integração sem homogeneização forçada, na Europa, durante séculos lugar de emigração, a imigração da últimas décadas, sobretudo a de origem africana, veio trazer um factor de heterogeneidade ao qual as sociedades europeias, mais ciosas da sua identidade étnica, histórica e cultural, não têm sabido responder. Mesmo que a segunda e terceira geração dos imigrantes originários tenham a nacionalidade dos países europeus onde nasceram, a verdade é que eles continuam frequentemente a sentir-se como estranhos ou pelo menos como diferentes, desde logo porque a sociedade em geral lhes faz sentir isso mesmo. Os sentimentos difusos de racismo e de xenofobia, explorados pelos partidos de extrema-direita, encarregam-se de lhes lembrar a sua origem e a sua diferença.
A situação evoluiu sem dificuldades maiores enquanto o crescimento económico permitiu criar empregos e alimentar a ascensão social dos imigrantes e seus descendentes e enquanto políticas sociais generosas puderam manter serviços públicos e prestações e equipamentos sociais capazes de atenuar os factores negativos do ambiente de vida nos feios e segregados aglomerados suburbanos onde essas comunidades foram sendo alojadas, em cinzentos e compactos prédios de apartamentos sem beleza nem qualidade (quando não em bairros de lata...). Esse equilíbrio entrou, porém, em dificuldades quando a crise económica fez aumentar consideravelmente o desemprego - que atingiu em primeira linha essas comunidades - e o "ascensor social" (na expressão de um maire da região parisiense) deixou de funcionar, acentuando a sensação de bloqueio de perspectivas para milhares e milhares de jovens sem emprego nem esperança de vida e, para mais, sentindo-se desenraizados no seu próprio país.
Mesmo assim, não deixa de ser surpreendente a gravidade da revolta, a qual, para além do mal-estar acumulado e do potencial de violência gerado, revela também uma inesperada incapacidade de previsão e de resposta das forças de segurança. Parecem ter razão os que censuram a falta de "policiamento de proximidade" nos bairros problemáticos e o seu abandono ao império de gangs juvenis e das máfias da droga e do crime organizado, tanto mais ousados quanto mais as forças de segurança deixam de tornar visível a sua presença. Por outro lado, parecem evidentes as dificuldades provocadas às forças de segurança pelas tácticas de guerrilha urbana utilizadas por pequenos grupos dotados de grande mobilidade e ajudados pelos novos meios de comunicação (Internet e telemóvel).
Nada mais pernicioso para a própria ideia de segurança do que deixar criar a sensação de que em certos guetos suburbanos deixou de imperar a autoridade do Estado e que existem territórios fora do seu controlo e fora da lei. O primeiro dever de qualquer Estado - e isso vale por maioria de razão num Estado de direito - é garantir a segurança pública. A vaga de destruição do património público e de haveres privados (sobretudo automóveis) a que se tem assistido em França nestes dias é pelo menos inquietante: se um país com os meios da França revela tal incapacidade de resposta à violência urbana, o que poderá suceder em países menos preparados para ocorrências semelhantes?
Mais preocupantes do que a violência suburbana em si mesma são os efeitos que ela vai ter, quer em termos sociais quer políticos. No plano social, a radicalização da violência só pode trazer um acréscimo de sentimentos racistas e xenófobos em França. Politicamente, a revolta só pode favorecer as políticas securitárias e as forças de direita que normalmente costumam erigi-las em solução para a delinquência ou a agitação social. Não deixará de ser irónico que, estando a direita no poder e sendo ela a responsável pela degradação da situação económica e social do país, seja ela, em última análise, a tirar proveito da rebelião contra essa mesma situação. Só que é também nestas águas que costuma pescar a extrema-direita, que verá nesta onda de violência uma confirmação das suas posições hostis à imigração e às minorias étnicas. A menos de dois anos das eleições presidenciais francesas, esta perspectiva não deixa de ser particularmente perigosa.
Seria estultícia pensar que estamos perante um "mal francês", que só aos franceses deve preocupar. Longe disso, infelizmente. O fogo que subitamente deflagrou nas banlieues de Paris e outras cidades francesas pode bem vir a incendiar outras paragens por esta Europa fora, onde as mesmas condições de segregação urbana, desemprego, delinquência e desenraizamento social se reproduzem. Elas são o resultado de dois problemas europeus: crescimento económico prolongadamente fraco e dificuldades de integração das suas minorias étnicas resultantes da imigração. O primeiro gera desemprego e insegurança pessoal, pressiona a segurança social e diminui os recursos fiscais do Estado e a sua capacidade para responder às necessidades públicas; o segundo cria a segregação social e urbana e fomenta sentimentos de alienação e de revolta. Se conjugados, como sucede em França, os dois problemas podem ter os resultados explosivos.
É evidente que a prioridade é acabar rapidamente com a onda de violência e restabelecer a ordem e a segurança pública nas cidades francesas. Mas seria ilusório pensar que depois tudo pode ficar na mesma, com a prisão e condenação de algumas dezenas de responsáveis pelas destruições ocorridas. A situação de crise que os gravíssimos desacatos em Paris e noutras cidades francesas vieram evidenciar carece de respostas políticas de fundo que proporcionem uma esperança de vida decente e digna para todos os que habitam os subúrbios degradados por essa Europa fora. Quando Paris está a arder, convém lembrar que nem só ela é combustível...
(Público, 3ªfeira, 8 de Novembro de 2005)

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