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17 de abril de 2006

Iraque - o deve e o haver 

por Ana Gomes (publicado pelo jornal "Público" em 26 de Março)

O artigo de opinião de José Manuel Fernandes (JMF) publicado no «Público» a 20 de Março, a propósito do terceiro aniversário da invasão do Iraque, merece ser comentado, tal como a desfaçatez de José Manuel Barroso (JMB) ao admitir, no mesmo dia, que decidira, como Primeiro Ministro de Portugal, apoiar a invasão do Iraque com base em informações sobre armas de destruição maciça (ADM) que afinal não tinham fundamento.
Tanto um como o outro precisam de admitir o que é hoje irrefutável, para controlar os danos e preservar alguma credibilidade. Mas nem um nem outro têm a honestidade intelectual de reconhecer que realmente erraram. Antes porfiam em justificar de algum modo as posições que tomaram: JMB respalda-se no primarismo da escolha entre os «bons» (os amigos americanos) e os «maus» (a banda de Saddam): se os "bons" nos mandarem deitar a um poço, atiramo-nos alegre e confiadamente. Por seu lado, JMF prefere especular em cenários hipotéticos; e o que escolhe não faz mais do que confirmar (surpresa!) aquilo que ele sustenta há três anos: que invadir o Iraque foi a melhor opção. Diz ele que "não sabemos como teria evoluído a situação caso se tivesse optado por prosseguir uma política de 'contenção ". Pois não, e é por isso mesmo que os decisores políticos têm cabeça: para fazer juízos sobre as consequências da invasão, baseando-se naquilo que aconteceu e está a acontecer.
"A evolução provável" que JMF descreve é tão provável como muitas outras e não deve por isso ser considerada provável, mas sim plausível. Especulações deste tipo só realçam a pobreza do arsenal argumentativo de JMF perante as evidências avassaladoras, acumuladas desde Março 2003, que apontam na direcção oposta da que lhe agrada. Os factos, e uma análise baseada neles, estão bem acima de cenários «what if» na hierarquia de reflexões úteis sobre o que quer que seja.
Quanto à substância, os argumentos auto-justificativos dos Josés Manuéis resumem-se assim: «apoiámos a invasão do Iraque, mas não nos peçam agora para assumirmos a responsabilidade, porque fomos enganados pelos serviços de informações». Mas os serviços de informações não invadem países. Entre os relatórios da CIA/MI-6 e a queda do primeiro míssil de precisão numa instalação de defesa antiaérea iraquiana vai todo um processo de tomada de decisões políticas. De políticos. De governantes. Com uns editorialistas a ajudar ao "spin"...
Sabemos hoje (sabíamo-lo então e alguns dissemo-lo, remetendo até para «sites» «neo-cons» que o confirmavam) que essa engrenagem política já tinha sido desencadeada muito antes de se invocarem as ADM, ou as ligações de Saddam à Al Qaeda (outro embuste) ou (a última coisa a preocupar quem apoiou a invasão) os direitos humanos dos iraquianos. Mas ao JMB, pragmático, interessa pôr o assunto para trás das costas o mais rapidamente possível ? e se tudo se centrar na falsidade das ADM, tanto melhor, a culpa foi dos malandros das secretas. Ao JMF e afins, pelo contrário, não interessa a presença ou não de ADM porque a priori lhes agrada a ideia da invasão, qualquer que seja o pretexto. A priori apoiam a Administração Bush. O Iraque é só uma área de aplicação empírica do dogma da fidelidade aliada. Nesse sentido, detalhes ADM ou não-ADM são irrelevantes.
Também sabemos que uma decisão desta envergadura implica danos colaterais que não podem ser desprezados - não se trata só dos horrores da guerra, dos dilemas morais com que se confrontam tropas ocupantes (dilemas que dificultam tremendamente a tarefa essencial de combater o terrorismo), mas também dos danos causados à ordem e à legalidade internacionais por declarações infectas de pessoas como Bush, Cheney, Rumsfeld, Blair, Straw etc. no sentido de deslegitimar a ONU. Uma tal decisão deve tomar em consideração uma lista extensa de factores e não só a natureza APARENTE da ameaça descrita por quaisquer serviços de informação.
Choca a disponibilidade dos dois Josés Manueis para saltar para o poço, fiados nos aliados, sem cuidar dos fundamentos, princípios, implicações, consequências. Compreende-se que, a posteriori, lhes convenha envolver os juízos (claros há 3 anos) em ambiguidades do tipo "foi a decisão certa, mas foram cometidos erros" e em cenários hipotéticos: tudo para evitar lidar com as consequências da sua opção. Mas o ónus, como as auto-justificações de ambos Manueis indiciam, continua a estar com quem apoiou a invasão.
Quando JMF diz que o "juízo final da História ainda está por fazer e restam cartas por jogar", contradiz-se, porque no primeiro parágrafo insiste que "mesmo assim continuo a pensar que a decisão foi acertada, que o mundo e o Iraque estão melhor". Se o juízo final da História ainda está por fazer, porque é que JMF insiste em se antecipar? A resposta é simples: o juízo da História já pode ser feito. 3 anos de ocupação, 30 000 civis iraquianos e 2 300 soldados americanos mortos, dezenas de milhares de feridos depois da invasão, o Iraque à beira da guerra civil ou da anarquia. Já se está a concluir sobre a bondade da invasão: ninguém no futuro próximo, pelo menos nesta geração, vai voltar a levar a cabo uma outra 'invasão ideológica', baseada numa fé cega nas virtudes da própria causa. JMF, se ainda não chegou a conclusões, nunca chegará. Porque não quer chegar. Senão tinha que retractar-se perante todos os que procurou tingir de anti-americanismo e apaziguamento chamberlainiano em 2003.
JMF diz no final do seu artigo que "se logo em 2003 identifiquei alguns dos riscos associados à invasão, se esses riscos se concretizaram e se muita coisa correu e corre mal, feito o balanço ainda penso que o mundo e o Iraque estão melhor...". Que pena que JMF não tenha ido para Bagdad assessorar José Lamego, ou sido contratado pelo Pentágono para desenhar para o Iraque um Plano Marshall (teria sido mais um plano Morgenthau, concerteza...).O Iraque seria agora uma democracia-modelo, próspera e livre. A visão de JMF podia ter salvo o Iraque. Mas os americanos não lêem o "Público" e por isso a invasão do Iraque não foi perfeita.

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