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19 de junho de 2006

Fim de um défice democrático 

Por Vital Moreira

Já não era sem tempo. Quase desde a entrada de Portugal na então ainda designada Comunidade Económica Europeia (CEE), foram muitos os que denunciaram um défice democrático no que respeita ao escrutínio da participação nacional nas instituições europeias. E desde há muitos anos, a Constituição Portuguesa exige uma lei sobre a participação da Assembleia da República (AR) nas matérias pendentes de decisão em órgãos no âmbito da União Europeia que incidam na esfera da sua competência legislativa reservada, bem como uma lei sobre o regime de designação nacional dos membros de órgãos da União Europeia. Parece que, finalmente, essas graves deficiências vão ser superadas, com a apresentação de projectos de lei na Assembleia da República, incluindo por parte do PS, o que garante a sua aprovação.
Entre as importantes implicações nacionais da integração europeia, contam-se duas que aqui interessam especialmente. Por um lado, tendo a UE competências legislativas cada vez mais vastas (mercê do alargamento das suas atribuições), sucede que grande parte da legislação vigente em Portugal é direito de origem comunitária (regulamentos e directivas comunitárias), em vez de legislação nacional. Por outro lado, há vários cargos comunitários de designação nacional: para além do comissário nacional, há os juízes e o advogado-geral dos tribunais comunitários, os representantes nas agências comunitárias, etc.
Ora, sucede que até agora não existe nenhuma intervenção da AR nos procedimentos legislativos comunitários, designadamente a montante da discussão dos projectos de regulamento ou de directiva nas instituições comunitárias competentes, o Conselho e o Parlamento Europeu; do mesmo modo, os titulares dos cargos comunitários são livremente indicados pelo Governo, sem qualquer procedimento público de escolha a nível nacional, mesmo nos casos em que se trata de cargos que gozam de garantias de independência (por exemplo, os juízes).
As consequências em termos de défice democrático são óbvias. Enquanto a Constituição reserva à AR um conjunto de matérias, de forma a assegurar a sua discussão pública e participada, quer pela oposição quer pelo público em geral, as leis comunitárias que incidem sobre as mesmas matérias são discutidas e aprovadas sem nenhuma intervenção do Parlamento nacional. Acresce que também não existe nenhuma obrigação do Governo de tornar públicas as suas posições no Conselho da UE, pelo que a legislação comunitária que passa por aquela instituição comunitária padece de uma forte opacidade quanto às posições nacionais. É fácil ver que uma parte cada vez mais importante da nossa ordem jurídica passa ao lado do Parlamento português, que não é chamado a pronunciar-se previamente sobre a legislação comunitária. Do mesmo modo, enquanto a Constituição requer a nomeação independente de certos cargos públicos internos, eles são de livre nomeação governamental, quando se trata de cargos comunitários afins.
O projecto de Constituição europeia previa o envio obrigatório dos projectos de legislação comunitária para os parlamentos nacionais, que teriam um certo prazo para poderem pronunciar-se sobre eles, desde logo quanto ao respeito do princípio da subsidiariedade, ou seja, quando à competência das instituições da UE para se ocuparem da questão em causa. A suspensão do processo de aprovação da Constituição europeia adiou indefinidamente esse progresso quanto ao envolvimento dos parlamentos nacionais nos procedimentos legislativos da UE. Seja como for, nada impede que a nível nacional se imponha aos governos a submissão dos projectos legislativos da UE aos parlamentos nacionais, para estes se pronunciarem-se sobre eles, se o desejarem. No caso português, como se viu, trata-se mesmo de uma obrigação constitucional, que está dependente de regulação por lei interna, cuja falta constitui uma situação de injustificável inconstitucionalidade por omissão, já assinalada pelo Provedor de Justiça.
O défice português nesta matéria é tanto mais lamentável quanto é certo que muitos outros Estados-membros instituíram, desde há muito, não somente mecanismos efectivos de controlo da actuação dos seus governos no plano comunitário, mas também esquemas de intervenção parlamentar efectiva no procedimento legislativo comunitário, tomando posição sobre os respectivos projectos, de modo a obrigar os governos a segui-la ou a tê-la em conta na discussão e votação dos mesmos em Conselho da UE. Bastava Portugal seguir as melhores práticas alheias.
No caso do referido projecto de lei do PS, ele cobre as duas referidas áreas de actuação. No que respeita à intervenção da AR em relação a projectos de legislação comunitária, ela está prevista quer quanto ao seu conteúdo, quer quanto ao respeito do princípio da subsidiariedade. O Governo passa a ser obrigado a enviar os projectos de diploma à AR para conhecimento e emissão de parecer. No primeiro caso, o destinatário do parecer é o Governo. O parecer não é vinculativo, mas é evidente que ele não é despiciendo, devendo o Governar explicar por que é que o não seguiu (comply or explain). No caso de eventual desconformidade com o princípio da subsidiariedade, o parecer é dirigido às instituições comunitárias, dependendo a sua influência da sua força e de ser ou não acompanhado de posições convergentes de outros parlamentos, o que pode conduzir a Comissão Europeia (que goza do poder exclusivo de iniciativa legislativa comunitária) a retirar ou reconsiderar o projecto de diploma.
No que diz respeito à nomeação de titulares de cargos comunitários, o projecto de lei socialista distingue entre os cargos de natureza não jurisdicional e os cargos de natureza jurisdicional. Quanto aos primeiros, o Governo deve remeter à comissão de Assuntos Europeus da AR a indicação dos indigitados, acompanhada de um currículo dos mesmos, cabendo à comissão emitir um parecer, podendo organizar uma audição dos indigitados. No caso dos cargos de natureza judicial, o projecto de lei prevê que o Governo deve indigitar pelo menos três candidatos e que a análise destes e o parecer sobre os mesmos, incluindo a eventual audição, sejam efectuados por uma comissão de selecção independente. De novo, o parecer não é vinculativo. O projecto diz, porém, que, quando o Governo não siga o parecer, deve fundamentar os motivos por que o não faz.
Para além destes dois novos mecanismos específicos, o projecto de diploma em discussão procede a um considerável reforço dos meios de controlo parlamentar da acção do Governo a nível comunitário. Assim, entre outros, prevêem-se os seguintes: debates parlamentares com a presença do Governo na semana antecedente a cada reunião do Conselho Europeu, sobre os temas agendados, e na semana posterior, sobre as conclusões e as respectivas posições de Portugal; reuniões duas vezes por semestre da comissão parlamentar de Assuntos Europeus, com a presença de membros do Governo, sobre temas agendados e debatidos, posições de Portugal e conclusões; obrigação do Governo de apresentar à AR, no 1.º trimestre de cada ano, um relatório que permita o acompanhamento da participação de Portugal no processo de construção da União Europeia.
Não é preciso estar de acordo com todas as soluções na especialidade para considerar altamente meritória esta iniciativa legislativa. Se aprovada, dá-se um passo em frente na qualidade da nossa democracia e da nossa relação com a UE.

(Publico, Terça-feira, 13 de Junho de 2006)

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