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4 de outubro de 2006

A direita que não diz o seu nome 

Por Vital Moreira

O conclave do "Compromisso Portugal" traduziu-se na convergência da elite dos interesses (empresários, gestores, advogados de negócios) com a direita liberal de extracção doutrinária, que pontificou na preparação dos documentos de base e na comissão promotora. Com ideias mais à direita do que as do PSD e menos conservadoras do que as do CDS-PP, a plataforma do Convento do Beato deu expressão a uma direita (neo)liberal intersticial que anda à procura da sua expressão orgânica como grupo de pressão sobre o Estado e sobre os partidos. A prometida ?institucionalização? do "movimento" pode bem vir a ter impacto na configuração política tradicional da direita em Portugal.
Descartem-se à partida as pretensões "apolíticas" dos protagonistas da referida iniciativa. Seria difícil imaginar uma iniciativa mais retintamente política e ideológica do que esta. Basta ver as listas dos promotores e dos intervenientes, para verificar a considerável presença tanto de pessoas com notório passado de intervenção político-partidária (sobretudo ligadas ao PSD), como de conspícuos doutrinadores da direita liberal e ultraliberal em Portugal, expoentes das suas publicações mais aguerridas. A tentativa de negação da inocultável dimensão político-ideológica do evento é em si mesma uma forma ideológica de "vender" o movimento como uma iniciativa da "sociedade civil", necessariamente apolítica e tendencialmente "técnica" e desinteressada. Mas a verdade é que o dito movimento não passa de uma representação , aliás assaz elitista, da direita política de inspiração neoliberal.
Tal como antigamente os partidos da esquerda revolucionária fomentavam movimentos frentistas para alargar a sua mensagem e preservar a sua própria "genuinidade de classe", também agora os partidos da direita tiram proveito de alegados movimentos da "sociedade civil" para veicular as suas posições e pontos de vista perante auditórios mais alargados. Com uma diferença, porém. Enquanto os movimentos frentistas dos partidos da esquerda revolucionária eram mais moderados, menos doutrinários e socialmente mais heterogéneos do que estes, agora os movimentos da direita são mais radicais, mais doutrinários e mais elitistas do que os partidos da mesma área.
O radicalismo liberal das propostas do "Compromisso Portugal" é evidente em várias áreas onde a vulgata neoliberal surge em todo o seu esplendor. Tal é o caso da redução do Estado a tarefas mínimas e da reconfiguração da educação, da saúde e da segurança social (noção propositadamente substituída por "protecção social") segundo a nova cartilha. A orientação geral é a desmontagem das traves-mestras do Estado Social, tanto no que respeita ao tendencial afastamento do Estado da esfera social como na privatização dos mecanismos de garantia dos principais direitos sociais (direito à educação, direito à segurança social, direito à saúde).
No caso do emagrecimento do Estado, o excesso de zelo vai ao ponto de defender a lunática ideia de reduzir 200 000 funcionários públicos em cinco anos. No caso dos serviços públicos fundamentais do Estado social, a linha de orientação consiste em reduzi-los à garantia de esquemas mínimos para os mais necessitados, deixando à responsabilidade individual dos que podem a promoção dos seus próprios interesses individuais nessas áreas. Daí a generalização dogmática do princípio do utente-pagador, bem como da liberdade de escolha entre o público e o privado (escolas, hospitais, etc.), mesmo no caso de serviços suportados pelo Estado, e ainda a privatização da gestão dos referidos estabelecimentos públicos.
A proposta mais radical é obviamente a respeitante ao sistema de segurança social, o qual seria fragmentado num sistema público de assistência social para os carenciados, num sistema de seguros individuais para as eventualidades de doença, desemprego, etc. e num sistema autónomo de pensões de reforma, que passaria a assentar em deduções para contas individuais de capitalização. Para financiar o enorme défice em que o actual sistema de segurança social incorreria pelo facto de deixar de receber as actuais contribuições dos beneficiários, os defensores daquela "revolução" não têm outro meio do que propor a sua cobertura pela emissão de uma gigantesca dívida pública nas próximas quatro décadas, a pagar durante quase um século. Como é fácil ver, trata-se de uma ideia ainda mais radical do que a do PSD -- pois este propõe um sistema misto, embora predominantemente assente sobre as contas individuais de capitalização -- sendo de questionar se ela não é propositadamente ultra-radical só para fazer da proposta do PSD uma ideia "moderada".
Esta proposta relativa à protecção social, em geral, e ao sistema de pensões, em especial, é a que mais notoriamente revela a "visão" doutrinária do CP, na medida em que visa substituir uma modelo de solidariedade intrageracional e intergeracional por um sistema dualista, composto por uma componente pública de mínimos para os mais pobres e por uma componente de capitalização puramente individualista para os demais. De resto, é esse mesmo esquema dualista que perpassa por todas as propostas neoliberais no domínio social, substituindo os sistemas públicos de vocação universal (sistema nacional de saúde, sistema geral de segurança social) por sistemas públicos destinados somente aos carenciados, enquanto os demais ficam livres para procurar no mercado os serviços de que necessitam.
É evidente que nem tudo nas ideias do CP compartilha deste radicalismo liberal. Há muitos diagnósticos e muitas ideias certeiras em áreas menos vulneráveis aos dogmas e à ideologia privatistas, por exemplo na justiça e no ordenamento do território. Por outro lado, no domínio da economia e da empresa, as propostas não se afastam muito das ideias já tradicionais da direita (privatizações, facilitação dos despedimentos, redução dos impostos e da sua progressividade, etc.). Porém o que marca as propostas do CP sãos as que dizem respeito à função do Estado e aos direitos sociais. Aí, sim, há uma verdadeira declaração de guerra ideológica, em nome da "teologia" da iniciativa privada e da restrição das prestações públicas a uma função de garantia de mínimos para os mais necessitados, estabelecendo uma espécie "apartheid" social entre os "have" e os "have nots". Nesse aspecto, a reunião do Beato traduziu-se numa ostensiva ofensiva ideológica contra o modelo social saído da revolução de 25 de Abril e da Constit
Um dos fundamentos para as teses da convergência da esquerda e da direita foi, por um lado, a conversão da direita aos direitos sociais e, por outro lado, a conversão da esquerda à economia de mercado e ao liberalismo económico. Mas essa tese só tinha sentido se se mantivesse o compromisso histórico entre a direita e a esquerda no que respeita ao Estado social, que na Europa resultou de uma "parceria" entre a democracia cristã e a social-democracia. Mas esse pressuposto não se verifica hoje em dia. É que enquanto a esquerda, convertida à economia de mercado e à eficiência económica, se mantém fiel ao modelo social europeu e ao papel do Estado na garantia do mesmo, já a direita liberal abandonou esse compromisso e partiu em guerra contra ele. Por isso, se é certo que a economia deixou de separar fundamentalmente a direita e a esquerda social-democrata, já assim não sucede, longe disso, no que respeita ao
A assembleia do Beato teve o mérito de nos recordar e tornar incontornável essa evidência. Quando se sustenta, por exemplo, que a desigualdade de rendimentos se combate com a concorrência económica, então é evidente que há um mundo a separar duas visões distintas da sociedade e do papel do Estado.

(Público, 3ª feira, 26 de Setembrode 2006)

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