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31 de agosto de 2007

Frankenstein à nossa mesa? 

por Ana Gomes

Foram ilegais e errados os meios usados por activistas "Verde Eufémia" ao destruírem um campo de milho transgénico, cultivado na Herdade da Lameira, em Silves, há duas semanas. Não é com vandalismo, de cara tapada, contra a propriedade privada de quem age nos termos da lei, que se luta de forma eficaz contra os organismos geneticamente modificados (OGMs). É a legislação que permite o cultivo de OGMs que deve ser combatida, não o agricultor João Menezes. A exploração de questões laterais suscitadas por esta acção (eficácia da actuação da GNR ou eventuais ligações partidárias dos activistas) desviou atenções da questão central: a razão de ser e as consequências do cultivo de OGMs.
Mas porque de todo o mal se deverá sempre procurar extrair alguma coisa de bom, interessa agora que, a propósito deste lamentável incidente, os portugueses se esclareçam sobre o que implicam os OGMs. Na minha perspectiva, para darem ao Governo sinais claros de que nos deve proteger contra eles e não abrir-lhes o caminho. Nesta matéria, concorro com o ponto de vista da Confederação Nacional de Agricultura: sem veleidades de ser especialista, por tudo o que li e investiguei, no Parlamento Europeu tenho votado contra as investidas do "lobby" que visa disseminar os OGMs na UE.
Na União Europeia, a importação e cultivo de OGMs esteve proibida desde 1999 até 2003. Por queixa dos EUA, Argentina e Canadá, a UE foi condenada na OMC, no ano passado, por violação das regras do comércio mundial, embora já desde 2004, estivesse a abrir gradualmente as portas, em resultado da acção junto da Comissão e de alguns Estados-Membros, das poderosas multinacionais do sector, como a Monsanto e a Bayer. Já este ano, foi autorizada a presença de OGMs até 0.9% nos produtos rotulados como "biológicos", ao rever-se o Regulamento da agricultura biológica, que até então determinava "tolerância zero". A Comissão Europeia admite que a UE é hoje um dos maiores importadores de OGMs, apesar de a maioria dos europeus se declarar preocupada.
Portugal reabriu a porta ao cultivo de produtos geneticamente modificados em 2005, após cinco anos de moratória europeia, ao destinar 750 hectares para o cultivo de milho transgénico. A perspectiva de lucros na produção de bio-combustíveis contribuiu para vencer resistências. No mesmo ano, a superfície mundial de culturas geneticamente modificadas aumentou 11%, para 90 milhões de hectares cultivados por 8,5 milhões de agricultores, em 21 países, segundo um relatório do Serviço Internacional para a Aquisição de Aplicações Agro-Biotecnológicas. Entre eles, Espanha e França. Mas não será o argumento de que os nossos vizinhos aderiram aos OGM que leva Portugal a seguir-lhes o exemplo (nessa linha, já se teria legalizado o casamento de homossexuais e teríamos hoje um governo paritário!). No que respeita aos OGM, pelo contrário, o elementar princípio da precaução deveria determinar um controlo mais apertado em Portugal.
Porque sobre os perigos dos OGMs, há estudos científicos para todos os gostos: há quem defenda que são seguros e alegue que contribuem para o combate à fome mundial por serem mais resistentes; outros dizem serem prejudiciais à saúde e ao ambiente, provocando reacções alérgicas, doenças, bactérias resistentes a antibióticos e pesticidas (vendidos pelas mesmas multinacionais que disseminam os OGMs....), além da destruição de espécies de flora e fauna. Em 1989, registou-se nos Estados Unidos a morte de 37 pessoas e 1.500 ficaram afectadas por deficiência permanente, devido ao consumo de um suplemento alimentar produzido com uma bactéria geneticamente modificada. Com animais afectados, os casos são inúmeros, em vários países.
Será, porventura, necessário esperar anos, senão décadas, para se comprovar o efeito real dos OGMs, após uso prolongado, para a saúde e o ambiente. Mas, se continuar a expansão dos OGM a nível mundial, poderemos ser confrontados, demasiado tarde, com resultados científicos alarmantes, com consequências já irreparáveis.... porque os OGMs facilmente contaminam culturas vizinhas, transformando-as irreversivelmente também em OGMs (por isso, máxima ironia, as multinacionais do sector já vendem uma espécie estéril, a que chamam "terminator"- que, evidentemente, só elas fornecem, o que mais coloca os agricultores na sua total dependência...).
Como diz a sabedoria popular, em caso de dúvida, mais vale jogar pelo seguro. O princípio da precaução devia ser, nesta matéria, rigorosamente respeitado pelos governos e pela Comissão da UE. Até porque, tendo em conta os argumentos de todas as partes, o funda da questão respeita à necessidade de cultivar e importar OGMs. Ora, necessidade, necessidade, realmente não há! Os métodos agrícolas tradicionais permitem alimentar todo o planeta, se forem adequadamente apoiados e se for internacionalmente assegurada a distribuição equitativa da produção alimentar, incluindo por regras de comércio justo. Pelos fabulosos lucros das multinacionais, valerá a pena arriscar a saúde pública? Eu, por mim, estou certa de que os portugueses dispensam Frankenstein à mesa!

(publicado no JORNAL DE LEIRIA de 30.8.2007)

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