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6 de setembro de 2007

Irresponsabilidade profissional - Uma réplica 

Por Vital Moreira

Deixando de lado a "boutade" de me incluir numa suposta "troika do PS para a comunicação social" (não pertenço ao PS e limitei-me a apoiar uma solução que há muito tempo preconizo sobre a responsabilidade profissional dos jornalistas), importa responder ao artigo de Francisco Teixeira da Mota sobre o Estatuto dos Jornalistas (PÚBLICO de sábado passado), justamente quanto à responsabilização dos jornalistas por infracções deontológicas.
Imaginemos que um jornalista inventa uma reportagem que publica como verdadeira, iludindo os seus eleitores. Ou publica uma peça elogiosa para uma instituição, da qual recebeu dinheiro para o efeito. Ou denuncia uma fonte à qual garantiu sigilo. Ou grava furtivamente uma conversa informal. Ou identifica uma vítima de abuso sexual infantil. Ou plagia trabalho ou produção alheia. As situações, aliás reais, poderiam multiplicar-se. Essas condutas não devem ser sancionadas? Os seus autores devem ficar profissionalmente impunes?
Antes de mais, não está em causa a liberdade de imprensa nem a liberdade de informação ou de opinião dos jornalistas. Pelos abusos dessas liberdades - por exemplo, por injúria ou difamação ou por violação do segredo de justiça -, os jornalistas respondem judicialmente, sendo caso disso, a título de responsabilidade penal e/ou civil. As infracções deontológicas, essas, têm a ver com a violação das regras procedimentais que regem o exercício da profissão, e não com os conteúdos da informação ou da opinião. Não faz por isso o mínimo sentido, e é manifestamente abusiva, a acusação de que tal responsabilização vai "reduzir o espaço público e condicionar autoritariamente a circulação de informação e ideias". Não é verdade.
A responsabilidade disciplinar pelas infracções deontológicas legalmente estabelecidas é a regra da generalidade das profissões reguladas, sejam profissões liberais ou não, como sucede com os advogados, os médicos, os engenheiros, os enfermeiros, os corretores de bolsa, etc. Se um médico ou um advogado podem ser sancionados por infracções deontológicas, por que é que os jornalistas hão-de ter o privilégio da irresponsabilidade deontológica e de imunidade disciplinar?
Em Portugal, os principais deveres profissionais dos jornalistas estão desde há muito legislativamente estabelecidos. Sucede que até agora não havia sanção para as infracções a essas obrigações legais. A lei não previa um mecanismo sancionatório, deixando "imperfeitas" as normas legais que enunciavam tais deveres. Eram legalmente vinculantes, mas inermes...
A responsabilidade deontológica visa defender a dignidade e credibilidade da própria profissão. Uma profissão que não cuida de fazer observar efectivamente os deveres deontológicos está condenada a perder a confiança da opinião pública, o que é essencial no jornalismo. A questão fundamental é esta: deve permanecer a actual situação de anomia e de impunidade disciplinar, com os perniciosos efeitos sobre as más práticas profissionais, incluindo a "concorrência desleal"? Podem os jornalistas que cumprem escrupulosamente os deveres deontológicos aceitar que outros os violem impunemente, pondo em causa o prestígio e a reputação da profissão em geral?
Não é verdade que o poder disciplinar vá ser atribuído a uma "comissão (...) aberrante em termos de democracias representativas". As palavras fortes não substituem argumentos aceitáveis. Ora, o órgão a que se atribui essa competência já existe há muitos anos. Trata-se da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas, que é uma "entidade pública independente", até agora presidida por um juiz e composta paritariamente por representantes dos jornalistas, por estes eleitos, e por representantes dos órgãos de comunicação social, indicados pelos mesmos. Esse órgão oficial já desempenha poderes de regulação da profissão, em matéria de acesso à profissão e de controlo das incompatibilidades. Vai agora exercer a competência para julgar as infracções aos deveres profissionais legalmente estabelecidos.
No entanto, a nova lei exige que todos os membros da Comissão, incluindo os representantes dos operadores, sejam jornalistas, pelo que a função disciplinar incumbe somente a jornalistas, ressalvado o presidente da Comissão, que é um jurista por eles cooptado. Trata-se portanto de uma forma de autodisciplina, em que os jornalistas são julgados por outros jornalistas ("peer review"), dos quais metade são directamente eleitos pelos próprios jornalistas. Tudo se passa, portanto, entre jornalistas. O que os contestatários da lei normalmente omitem é que o Governo não terá nenhuma interferência nem na composição nem na actuação do sistema de responsabilidade deontológica, a cargo de um órgão totalmente independente e só sujeito a escrutínio judicial.
Nem se invoque o facto de a solução contida no Estatuto dos Jornalistas não ser comum noutras paragens. Por um lado, não é verdade que não exista responsabilidade disciplinar institucionalizada noutros países, pois tal é o caso nos países onde existe ordem dos jornalistas, como a Itália (e não consta que esses países sofram de falta de liberdade jornalística). Por outro lado, não se pode invocar o exemplo de países como os Estados Unidos (ou do Reino Unido), onde não existe disciplina profissional oficial na generalidade das profissões e onde a liberdade dos jornalistas coexiste com formas efectivas de autodisciplina endógena, nem sequer se reconhecendo, por exemplo, o direito de resposta na comunicação social (que entre nós, porém, até tem protecção constitucional). A tradição constitucional e política conta muito nestas matérias.

(Publico, 4 de Setembro de 2007; texto revisto, corrigindo uma imprecisão relativa à nova composição da Comissão da Carteira Profissional dos Jornalistas)

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