<$BlogRSDUrl$>

13 de setembro de 2007

Mercado e democracia 

Por Vital Moreira

É corrente a ideia da correspondência entre economia de mercado e democracia liberal, que aliás constitui o cerne das doutrinas liberais, tanto no campo da teoria política como da teoria económica. Há democracia onde há mercado; há mercado onde há democracia. Uma postula o outro, e vice-versa.
A história parece validar essa asserção. Primeiro, a democracia liberal tem a sua origem no liberalismo clássico, cujo substrato essencial era o liberalismo económico. Segundo, a generalidade dos regimes autoritários – tanto os regimes comunistas ou autoritários de esquerda, como os regimes fascistas ou autoritários de direita – traduziram-se na eliminação ou, pelo menos, em grandes restrições à economia de mercado.
Basta referir o caso do Estado Novo entre nós, em que o autoritarismo político impôs um "capitalismo autoritário", com profundas restrições às liberdades económicas (salvo naturalmente para os grupos que florescerem à conta do regime). Lembre-se o "condicionamento industrial", a organização corporativa forçada da economia e as limitações à liberdade profissional, a fixação generalizada de preços, etc.
A teoria dominante da democracia liberal reitera no fundamental esta correspondência entre a esfera do político e a esfera da economia. Se a democracia liberal assenta na ideia do cidadão livre e responsável, então o melhor ambiente para ela é a economia de mercado livre, como garantias da liberdade individual face aos poderes públicos e privados. Inversamente, sem democracia liberal, e sem o Estado de direito que lhe é inerente, não pode estar garantido justamente nem o direito de propriedade nem a liberdade de iniciativa económica que são essenciais à economia de mercado.
Todavia, esta correspondência recíproca não é tão "natural" quanto parece. Por um lado, a economia liberal existiu muito tempo antes de haver democracia liberal. Os liberais defendiam formas de governo representativo limitado e eram (e alguns continuam a ser) fundamentalmente antidemocratas, contrários ao sufrágio universal e à entrada das massas populares na cena política. Ou seja, a economia de mercado pode dispensar de bom grado a democracia, mesmo se liberal. Por outro lado, a democracia liberal pode coexistir com formas assaz limitadas de mercado. Nos anos 60 do século passado, a generalidade das democracias europeias eram caracterizadas por um forte intervencionismo do Estado na economia, por monopólios públicos em vários sectores económicos, pelo planeamento público da economia, pela fixação de preços de muitos bens e serviços. Mais do que economia de mercado em sentido estrito, muitos falavam em "economia mista", não faltando mesmo elaboradas teorias sobre a aproximação entre o capitalismo e o socialismo (tendo em vista algumas experiências de "socialismo de mercado").
Nem sequer se verifica uma correspondência necessária entre liberdade política (que não chega para definir democracia liberal) e liberdade económica (que não chega para definir economia de mercado). Se pensarmos no liberalismo económico de Pinochet no Chile (que contou com o apoio de Milton Friedman!) ou no actual capitalismo selvagem da China comunista, fácil é perceber que a equação ideológica entre economia livre e liberdade política está longe de ser universal. Inversamente, nas economias europeias da segunda metade do século passado coexistiam fortes restrições à liberdade económica com elevados níveis de liberdade política. E ainda hoje talvez seja mais apropriado falar em "economia social de mercado", para designar o "casamento" entre economia de mercado e modelo social europeu.
Não menos problemática é a relação de primazia entre a democracia liberal e a economia de mercado. Nas transições democráticas das últimas décadas a conquista da democracia tem sido acompanhada do triunfo da economia de mercado, tanto no caso dos antigos regimes comunistas como no caso dos regimes autoritários de direita no sul da Europa, na América Latina e na África. O que é que foi determinante? Parece evidente que o elemento decisivo nas transições democráticas foi o factor político, a conquista das liberdades e a instauração da democracia; mas também parece inquestionável que um dos elementos determinantes da pulsão transformadora foi a crise das economias dirigidas nesses países. Foi a revolução política democrática que proporcionou a instauração da economia de mercado. Mas sem a crise das economias controladas nesses países, a transição democrática provavelmente não teria ocorrido ou teria sobrevindo bem mais tarde.
Uma economia de mercado bem sucedida tornou-se uma condição de êxito da transição democrática e da consolidação da democracia liberal. Mas só por si o mercado não gera a democracia.

(Diário Económico, 12 de Setembro de 2007)

This page is powered by Blogger. Isn't yours?