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8 de outubro de 2007

Da democracia partidária 

Por Vital Moreira

Para além do impacto que a "chicotada psicológica" no PSD tem sobre o partido e sobre o funcionamento do sistema político, há duas questões que estas eleições vieram pôr em destaque e que merecem alguma reflexão. Primeira questão: as eleições directas dos líderes partidários acrescentam democracia aos partidos? Segunda: as eleições directas não requerem a sua regulação externa, de modo garantir a sua genuinidade e credibilidade?
Comecemos pela primeira. Faz sentido a eleição directa dos líderes partidários? E constitui a mesma um suplemento de democracia partidária? Estas perguntas podem parecer ociosas ou, quiçá, provocatórias. Afinal, um número crescente de partidos adopta a eleição directa e universal dos líderes pelo conjunto dos militantes, em vez da eleição indirecta, em congresso de delegados. Além disso, se a democracia é acima de tudo democracia eleitoral, então mais eleições significam mais democracia, tratando-se ainda por cima da escolha dos dirigentes máximos dos partidos, cuja legitimidade e força política ficam assim reforçadas, perante o partido e perante o exterior.
Existe, porém, outra visão. As eleições directas constituem uma expressão de um movimento favorável à personificação do poder e à presidencialização do sistema de governo dos partidos. Além disso, elas tendem a valorizar mais a personalidade dos candidatos do que as suas propostas políticas, a favorecer a exploração demagógica dos sentimentos dos militantes, a agravar as clivagens preexistentes, a apoucar os congressos partidários, a aumentar o poder pessoal dos líderes, a marginalizar as oposições e a reduzir a sua "accountability" perante a assembleia representativa e os militantes.
A eleição directa tampouco proporciona a igualdade de oportunidades na concorrência à liderança partidária. Sem apoios à partida no aparelho partidário ou nas estruturas do poder externas (Governo, autarquias, etc.), será muito difícil a um candidato montar um mínimo da infra-estrutura e da rede necessária para uma candidatura, e muito menos para ter alguma possibilidade de êxito. A isto acresce a necessidade de recursos financeiros avultados para viagens, serviços de apoio, agências de comunicação, meios de propaganda, etc.
Depois há uma questão sistémica. Se, entre nós, os partidos políticos operam num sistema de governo de natureza essencialmente parlamentar, em que a escolha do chefe do governo resulta indirectamente das eleições parlamentares, por que é que os partidos políticos hão-de reger-se por um sistema de governo de tipo presidencialista, baseado na eleição directa do líder e na sua proeminência absoluta no sistema de poder partidário? Nem se diga que, a nível do sistema político, também há a eleição directa do Presidente da República; as situações não são equiparáveis, visto que o Presidente não é titular do poder governativo, mas sim de um "poder moderador", de supervisão do funcionamento do sistema político.
Bem se sabe, porém, que, uma vez instituídas as eleições directas, dificilmente se volta atrás. Para o bem e para o mal, elas são consideradas um "acquis" democrático, pelo menos pelos vencedores, sobretudo quando eles têm razões para pensar que não o seriam se não fossem as eleições directas. Mas a força dos factos não deve cancelar a discussão dos princípios acerca do sistema de governo dos partidos.
Vejamos agora a questão de saber se a eleição directa não impõe o estabelecimento de regras obrigatórias sobre a organização e os procedimentos eleitorais, para garantir a igualdade e a genuinidade das eleições.
Dado o papel político dos partidos políticos no sistema de governo, do qual eles são os protagonistas principais, as eleições partidárias deveriam estar sujeitas às mesmas garantias de transparência e de imparcialidade das eleições dos órgãos do poder político, quanto a financiamento dos candidatos, organização dos cadernos eleitorais, operações de escrutínio e apuramento de resultados, etc.. Justifica-se a existência de um comissão eleitoral independente, a garantia do direito de voto de todos os militantes, a fiabilidade dos cadernos eleitorais, os limites ao financiamento dos candidatos e a sua transparência, a fiscalização e contestabilidade do apuramento eleitoral.
Está em jogo a legalidade e legitimidade das eleições de um líder que poderá ser num futuro mais ou menos próximo candidato a primeiro-ministro. Se, por exemplo, é ilícito o financiamento de empresas aos partidos (ou aos lideres partidários), como é que não há-de ser proibido o financiamento de empresas a candidatos a líderes?
Contra isto logo se elevarão os radicais defensores da autonomia e da liberdade de organização dos partidos, que já se manifestaram há alguns anos contra a imposição do voto secreto nas eleições partidárias. Mas o argumento não é procedente. Primeiro, os partidos políticos não são uma organização livre da sociedade civil como as outras (mesmo essas, aliás, estão sujeitas às regras do Código Civil e da lei das associações); segundo, a democracia liberal é feita de um compromisso entre a liberdade e autonomia individual e colectiva, por um lado, e os requisitos mínimos da igualdade, transparência e genuinidade da expressão eleitoral, por outro lado.
Os partidos políticos são organizações privadas, sem dúvida, mas são também organizações constitucionais, devendo obedecer aos princípios constitucionais relativos ao governo democrático. As exigências democráticas constituem um fundamento legítimo para a limitação da liberdade de organização interna dos partidos políticos. Se os partidos não têm de ser amigos da democracia, têm pelo menos de observar os procedimentos democráticos. Se não estiverem obrigados a cumpri-los no seu interior, como se pode esperar que os cumpram fora?
(Público, 3ª feira, 2 de Outubro de 2007)

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