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25 de agosto de 2008

Afeganistão: trabalho para uma geração 

por Ana Gomes

Participei numa delegação do Parlamento Europeu que foi ao Afeganistão no fim de Abril. Voltei tocada pelo povo sofredor e pela paisagem extraordinária. E mal impressionada com o balanço de segurança, reconstrução e desenvolvimento. Voltei a pensar que o Afeganistão não pode ser largado a meio, à mercê da rapacidade e do tribalismo dos senhores da guerra, do fanatismo assassino da Al-Qaeda e dos seus apoiantes entre os taliban e do flagelo da produção e tráfico de droga.
Foi o 11 de Setembro de 2001 que voltou a pôr o Afeganistão no mapa geoestratégico ocidental, depois de uma década de negligência. Mas a Europa, os EUA e os seus aliados e ainda os países vizinhos precisam de se mobilizar realmente para reconstruir o Afeganistão de forma mais eficaz e mais rápida. Por razões tanto políticas, como humanitárias: a miséria, a violência e a impunidade que marcam as vidas dos afegãos são as raízes dos males que dali projectam insegurança para o exterior, quer através do terrorismo, quer do ópio. Nunca haverá segurança no Afeganistão sem desenvolvimento e sem Estado de direito. E as bases de um e de outro não estão ainda minimamente lançadas.
Sem a presença internacional, o Afeganistão resvalaria de novo para o mais profundo dos obscurantismos. Sem a intervenção militar de 2001 e a NATO não haveria hoje espaço humanitário para as ONG, por exemplo, poderem fazer o seu trabalho. A presença internacional contribuiu para alguns sucessos, especialmente na área da saúde e da educação. Por exemplo, mais de um terço das 6 milhões de crianças que vão hoje à escola são raparigas - a mais alta percentagem da história do país (sob regime taliban, entre 1996 e 2001, elas foram totalmente excluídas das escolas). E a taxa de mortalidade infantil, sendo ainda das mais elevadas do mundo, baixou 24 por cento desde a queda dos taliban.
Mas estes avanços são ensombrados pela percepção generalizada da degradação da situação de segurança nos últimos anos. O atentado contra o Presidente Karzai numa parada militar em Cabul, durante a nossa visita, evidenciou a colaboração de elementos dentro das forças de segurança afegãs com a Al-Qaeda. Mais recentemente, o atentado bárbaro contra a embaixada da Índia ilustrou de forma horripilante a insegurança que paralisa o país. O próprio Presidente Karzai, apesar de respeitado por elementos progressistas da sociedade afegã, é visto como figura fraca, luta pela sobrevivência política e física, e não tem força para impor uma visão estratégica para o país. A fragilidade das instituições em geral e a total ineficácia do sistema judicial, em particular, explicam o clima de absoluta impunidade em que operam os agentes da corrupção e da criminalidade, profundamente enraizados em ministérios como o do Interior e na polícia e entre os senhores da guerra, reciclados em ministros, parlamentares, juízes ou governadores de províncias. Por exemplo, os juízes, na maior parte iletrados, ganham 50 dólares por mês - metade do salário de um polícia ou de um soldado. Nem uns, nem outros demonstram evidentemente interesse em pôr fim a práticas pedófilas e à violência contra as mulheres, ambas culturalmente enraizadas.
A presença da Europa no país é importante, financeiramente. Mas no total, apenas 15.000 milhões dos 25.000 milhões de dólares de ajuda prometidos pela comunidade internacional desde 2002 se materializaram. Mais grave ainda é a maneira como estes e outros fundos europeus são gastos no Afeganistão. Por exemplo, as equipas de reconstrução provinciais (PRT) da NATO, muitas sob a responsabilidade de países europeus, revelam-se descoordenadas e ineficazes. É absurdo pensar que se ganham "cabeças e corações", com soldados a fazer de ONG de desenvolvimento! As actividades das tropas da NATO-ISAF devem centrar-se antes na criação do espaço de segurança para que as ONG, as instituições afegãs e outras possam actuar de forma estratégica na reconstrução e desenvolvimento do país. A crise identitária da ISAF (força de manutenção da paz ou braço armado da ajuda à reconstrução?) está directamente ligada aos famigerados caveats: uma série de países europeus impõem limitações geográficas e funcionais à utilização dos seus contingentes militares. A Alemanha, por exemplo, tem cerca de 3500 efectivos no terreno, mas recusa-se a pô-los em funções de combate no Sul do país, onde são mais precisos. Em vez disso, dedicam-se à "reconstrução" no Norte pacificado...
Quando é que governos e populações europeias assumem que o combate militar é uma das dimensões, por vezes necessária, da gestão de crises e que quem escolheu ser soldado decidiu arriscar a vida?
Tanto a ajuda ao desenvolvimento como as operações de combate da ISAF devem ser postas ao serviço de uma estratégia política coerente, que torne a democracia possível no Afeganistão. E no contexto afegão os taliban não podem ser eliminados: representam uma fatia considerável da etnia pachtun indispensável para qualquer solução política para o conflito, tanto quanto representaram uma reacção contra a criminalidade da Aliança do Norte, ainda hoje fortemente ressentida pela população afegã. Os recentes esforços do Reino Unido e do Governo afegão em estabelecer plataformas negociais com alguns dos líderes taliban vão na direcção certa: importa dividir os taliban, incluindo os moderados no processo político e isolando e combatendo aqueles cuja agenda maximalista, determinada pela Al-Qaeda, torna o diálogo impossível. E, como todos os interlocutores afegãos sublinham, não é possível continuar a política de avestruz da Administração Bush relativamente ao papel dos militares paquistaneses no apoio à Al-Qaeda e aos taliban nas zonas tribais fronteiriças.
Tudo isto significa que o envolvimento da comunidade internacional no Afeganistão é um compromisso para uma geração, no mínimo.
A Europa tem feito muito, mas não deixa verdadeira marca estratégica, por razões já conhecidas de outros cenários: por um lado, ausência de uma visão estratégica alternativa à dos EUA e insuficiente coordenação entre as actividades dos Estados europeus com a Comissão Europeia; por outro, um obsoleto desconforto com a utilização de meios militares, mesmo quando legitimados por claro mandato das Nações Unidas, o que coloca os actores europeus na ISAF à margem das decisões estratégicas. O sucesso da comunidade internacional no Afeganistão passa por um papel acrescido da Europa. Mas todos - europeus, americanos, japoneses, canadianos, e também o povo afegão- vamos precisar de longo fôlego e de muita coragem política, para construir um Afeganistão diferente.

Público, 15 de Julho de 2008

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