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24 de setembro de 2008

A questão dos transportes públicos urbanos 

Por vital Moreira

A imprensa da semana passada dava conta, mais uma vez, do enorme endividamento das empresas públicas de transportes, designadamente dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto. Pior do que isso, o défice não pára de crescer, agravando continuamente os encargos financeiros. Trata-se de uma situação insustentável.
Não pode obviamente pretender-se que os transportes urbanos sejam financeiramente auto-suficientes, por meio das respectivas tarifas. Mais do que outros "serviços de interesse geral", eles comportam consideráveis "externalidades" positivas, tanto sociais como ambientais, as quais - independentemente da sua forma de provisão, pública ou privada - devem ser suportadas pela colectividade em geral, e não só pelos utentes. Por isso, o subsídio público faz necessariamente parte da equação financeira dos transportes colectivos urbanos, devendo ser tanto maior quanto mais valor atribuído aos referidos benefícios colaterais.
O que, porém, não é defensável é a situação que se vive entre nós desde há décadas, em que, por um lado, se impõe um política de tarifas deliberadamente baixas, designadamente através dos "passes sociais" - que ficam muito aquém da cobertura dos custos de exploração, não falando dos custos de investimento -, enquanto, por outro lado, não se procede às transferências financeiras suficientes para cobrir os necessários défices, obrigando desse modo as empresas a endividarem-se cada vez mais, agravando as suas contas com crescentes encargos financeiros, numa espiral viciosa, em que o endividamento gera mais endividamento. É preciso cortar esse nó górdio, a começar pela transparência no cálculo dos "custos de serviço público" e pela sua adequada remuneração às empresas, para o que se impõe a sua contratualização.
É evidente, porém, que os transportes públicos urbanos nunca serão financeiramente sustentáveis sem uma política tarifária realista e sem o aumento da procura do transporte colectivo. Só que nem uma nem outra se obtêm sem corajosas decisões políticas, que não são propriamente populares. Sendo desnecessário elaborar especialmente sobre os custos políticos do aumento real das tarifas, também não é difícil perceber as dificuldades do favorecimento do transporte colectivo, o qual, para além da melhoria da qualidade do transporte público (o que tem sucedido), só pode passar pelo desfavorecimento do transporte individual.
Infelizmente, pouco ou nada se tem feito para contrariar a utilização automóvel nas áreas urbanas, incluindo as áreas metropolitanas, como Lisboa e o Porto, apesar do crescente congestionamento e da contínua degradação da qualidade de vida nas cidades, pejadas de automóveis por tudo quanto é sítio. E no entanto são bem conhecidos os factores que facilitam e os que dificultam a utilização automóvel nas cidades.
Entre os primeiros conta-se o estacionamento gratuito - incluindo o oferecido por estabelecimentos públicos e empresas ao seu pessoal - e a complacência com o estacionamento ilegal, incluindo sobre passeios pedestres. O mesmo sucede com a generosa distribuição de automóveis por entidades públicas ou privadas aos seus funcionários, muitas vezes acompanhados de provisões para combustível, o que constitui um forte incentivo à sua utilização individual. Em vez da oferta de viaturas automóveis e de estacionamento gratuito, que deveriam ser contrariados, as entidades públicas e privadas deveriam ser incentivadas a oferecer ao seu pessoal "passes" de transporte público, como já sucede em alguns casos.
Mais cedo ou mais tarde, porém, hão-de ter de se encarar medidas duras de restrição de tráfego automóvel nas cidades, incluindo a portagem de entrada, inaugurada há vários anos em Londres e entretanto replicada em várias outras cidades europeias, apesar de ela penalizar os residentes fora das cidades face aos residentes. Além da restrição à utilização automóvel, a portagem urbana gera uma apreciável receita que pode ser utilizada para financiar a melhoria dos transportes públicos, como é a norma nos exemplos citados. Dupla virtude, portanto.
No entanto, entre nós as condições culturais e políticas estão longe de maduras para a aceitação dessas medidas. Aliás, temos feito justamente o contrário, como afastar para longe da entrada das cidades o ponto de portagem das auto-estradas de penetração, ou de isentar de portagens auto-estradas em zonas metropolitanas, como sucedeu inicialmente na CREL e hoje sucede ainda em várias auto-estradas da área metropolitana do Porto. Pior era impossível em termos de favorecimento do transporte individual.
Por último, urge cessar a responsabilidade estadual, incluindo financeira, pelos transportes urbanos de Lisboa e do Porto. Os transportes urbanos são um serviço local, que deve ser de responsabilidade municipal ou intermunicipal, e não nacional, devendo a respectiva sustentação financeira caber essencialmente às respectivas colectividades territoriais, a nível municipal, intermunicipal ou metropolitano, conforme os casos. A exploração estadual dos transportes urbanos de Lisboa e do Porto viola ostensivamente o princípio da descentralização na atribuição de tarefas públicas, constitui uma forma iníqua de distribuição "vertical" da despesa pública (colocando os contribuintes a nível nacional a financiar serviços locais) e facilita a irresponsabilidade financeira dos transportes urbanos nas duas maiores cidades, quebrando a necessária ligação entre beneficiários e financiadores dos serviços públicos.
Se a exploração dos transportes públicos de Lisboa e do Porto fosse essencialmente uma responsabilidade municipal ou intermunicipal, como sucede noutros municípios, é fácil perceber que o défice não atingiria a dimensão que alcançou. Aquilo que todos pagam fica barato para os respectivos beneficiários. Urge também quebrar a conspiração de silêncio político a este respeito.
(Público, terça-feira, 26 de Agosto de 2008)

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