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31 de dezembro de 2008

Nos trinta anos da Constituição espanhola 

Por Vital Moreira

No corrente ano de 2008 celebram-se "aniversários redondos" de várias constituições bem sucedidas, designadamente da Constituição francesa de 1958, da Constituição espanhola de 1978 e da Constituição brasileira de 1988. Pela sua proximidade e pela sua afinidade com a nossa própria história política, importa assinalar os trinta anos da Constituição do país vizinho, que passaram a 6 de Dezembro, aniversário da sua ratificação por referendo popular.

Tal como a Constituição portuguesa de 1976, que a precedeu em dois anos e meio e que a influenciou em vários aspectos, a lei fundamental espanhola de 1978 é simultaneamente uma consequência e um factor essencial da transição democrática espanhola, sendo ambas testemunho da chamada "terceira vaga de democratização" (Huntington), que a revolução portuguesa inaugurou na madrugada de 25 de Abril de 1974.

Todavia, se a transição democrática portuguesa ficou gravada na história política do último meio século como exemplo de transição por ruptura revolucionária, a que se seguiu um atribulado processo de constitucionalização e de consolidação democrática, que prosseguiu até 1982, já a transição espanhola permanece como exemplo bem sucedido de "transição pactuada", num contexto de abertura política do regime autoritário depois da morte de Franco em 1975 e de disponibilidade das forças democráticas para um acordo de regime em favor de uma evolução pacífica da ditadura para democracia, por via da liberalização política e de eleições.

Desse carácter pactuado resultou não somente o forte consenso político do processo constituinte (culminando com a ratificação da Constituição em referendo nacional), mas também as suas opções políticas fundamentais. Entre elas contam-se a monarquia parlamentar como forma de Estado e de governo (no que a esquerda abdicou das suas arreigadas tradições republicanas), o Estado democrático e social de direito, um forte compromisso com os direitos fundamentais, incluindo os direitos económicos, sociais e culturais, uma economia de mercado aberta à intervenção pública, um parlamento bicamaral, incluindo um senado de representação territorial, e, em último lugar, mas não de menor importância, o reconhecimento do direito à autonomia política das "nacionalidades e regiões".

Foi na base deste amplo consenso constitucional que seguidamente se implantou e se consolidou a democracia espanhola, designadamente a implementação das comunidades autónomas, a alternância do poder com a chegada do PSOE ao governo logo em 1982, a adesão à Comunidade Económica Europeia (em 1985, juntamente com Portugal), a modernização económica e social e a transformação da Espanha numa potência emergente.

Nem tudo foram rosas, porém. Primeiro, a natureza pactuada da transição impôs a amnistia do regime autoritário e impediu o ajuste de contas com a guerra civil e com a ditadura franquista, bem como a reparação da memória das suas inúmeras vítimas, que somente agora está a ser vindicada. Depois, houve que enfrentar a tentativa golpista de 23 de Fevereiro de 1981 e o flagelo recorrente do terrorismo da ETA. Por último, houve que lidar com o potencial separatista dos nacionalismos periféricos, que ameaçam a coesão nacional e forçam o próprio quadro constitucional.

Entre os aspectos a sublinhar nos trinta anos da Constituição espanhola sobressai a sua notável estabilidade.

Ao contrário da Constituição portuguesa, várias vezes alterada, e de forma extensa e profunda em alguns capítulos, a Constituição espanhola permanece incólume desde a sua origem, com excepção de uma pontual alteração em 1992, para incorporar a elegibilidade de estrangeiros nas eleições municipais (em consequência do Tratado de Maastricht). Para isso contribuiu não somente a sua natureza compromissória originária e a sua abertura normativa, mas também as dificuldades do procedimento de revisão (que pode incluir a necessidade de ratificação referendária), sem esquecer a grande latitude com que a doutrina e jurisprudência constitucionais consideraram dispensável a revisão constitucional para acomodar, por exemplo, a adesão à CEE, o Tratado da UE de 1992 (salvo o ponto assinalado), o Estatuto do Tribunal Penal Internacional ou a fracassada Constituição europeia de 2004, questões estas que em outros países, entre os quais Portugal, necessitaram de revisões constitucionais.

Há seguramente aspectos datados na Constituição que têm suscitado propostas de revisão, como sejam, entre outros, a representação territorial no Senado (que deveria ter como base as comunidades autónomas e não as províncias, como estabelece a Constituição), a preferência masculina na sucessão ao trono, a delimitação de competências entre o Estado e as comunidades autónomas, o próprio procedimento de revisão constitucional. Mas nada garante que o receio de potenciais querelas constitucionais, sobretudo relacionadas com a actual natureza quase-federal da Espanha, não favoreça a inércia constitucional e a conservação indefinida do texto de 1978. Ainda na legislatura passada fracassou uma tentativa do PSOE para mexer em alguns dos aspectos acabados de referir.

Sendo a sétima constituição espanhola, desde a histórica e efémera Constituição de Cádis de 1812, a Constituição de 1978 é já a segunda mais estável da história constitucional espanhola e, de longe, a constituição democrática mais duradoura, depois da malograda Constituição da II República (1931-1939). Se mais razões não houvesse, isso bastaria para celebrar a vigente Carta Magna espanhola como um caso de sucesso constitucional, que está para "lavar e durar".

(Público, terça-feira, 9 de Dezembro de 2008)

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