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13 de março de 2009

Freios e contrapesos 

Por Vital Moreira

Não é por ser repetida muitas vezes que uma tese passa a ser verdadeira. Dizer que "Portugal não tem um regime político com freios e contrapesos [e que] o partido da maioria (...) controla todas as instituições do regime, [pelo que] vivemos numa espécie de 'ditadura conjuntural' do partido da maioria" (Henrique Raposo, no Expresso) - eis uma afirmação que não resiste à análise das nossas instituições políticas nem da nossa experiência política.

Num regime de natureza essencialmente parlamentar, como o nosso - em que o governo incumbe ao partido ou à coligação com maioria parlamentar, que concentram por isso o poder legislativo e o poder executivo -, há três instrumentos de contenção e limitação do poder da maioria, mesmo quando se trata de maioria absoluta. São eles a existência de poderes de veto alheios, a exclusão de certas funções da esfera da maioria e a criação de poderes de controlo independentes. Ora, ao contrário do que sucede em muitos outros sistemas parlamentares, todos estes mecanismos existem entre nós -, e em larga escala.

Os mais evidentes poderes de veto, em sentido amplo, são os do Presidente da República, não somente em relação às leis e aos tratados internacionais, mas também quanto à nomeação de importantes cargos públicos de natureza eminentemente executiva, como são o procurador-geral da República, os chefes militares, os embaixadores, etc., nomeações estas que em muitos regimes parlamentares constituem poderes livres do governo. O poder de veto é especialmente relevante quando é absoluto ou quando só pode ser superado por maioria de 2/3 no Parlamento, o que sucede em relação às leis mais importantes, a começar pelas leis eleitorais. O recente veto da lei sobre o voto dos residentes no estrangeiro mostra a grande eficácia desse poder.

De resto, toda a configuração do Presidente da República entre nós constitui o maior desmentido da tese de "falta de freios e contrapesos". Sendo um "quarto poder" com forte legitimidade eleitoral e com efectivos poderes de supervisão, de arbitragem e de moderação do funcionamento do sistema político, todos eles significam outras tantas limitações ao poder da maioria parlamentar-governamental, desde os soft powers de pronúncia na esfera política, passando pelos referidos poderes de veto, até ao seu "poder forte" de dissolução parlamentar (e, mesmo, em casos extremos, de demissão directa do Governo). Como vários partidos de governo experimentaram, desde o início, o poder presidencial de dissolução parlamentar, inclusive contra a maioria, constitui o mais decisivo contrapoder no nosso sistema de governo.

Os poderes de veto político entre nós não se limitam ao Presidente da República. A nossa Constituição confere um considerável poder de veto à própria oposição, quando exige maioria qualificada para a aprovação de certas leis, como sucede, entre outras, com as principais leis eleitorais, o que constitui uma notável restrição ao poder da maioria. Basta recordar, nesta legislatura, o falhanço da revisão da lei eleitoral das autarquias locais (que o PSD vetou depois de ter fechado um acordo sobre ela...), para verificar a eficácia de tal mecanismo.

Entre nós, os contrapoderes da oposição são comparativamente muito evidentes na própria esfera parlamentar, quer quando ao funcionamento do parlamento, quer quanto à agenda parlamentar ("poderes potestativos" da oposição), quer quanto às obrigações e sujeições parlamentares do Governo, incluindo os inquéritos parlamentares, limitações aliás reforçadas na presente legislatura, sob iniciativa da própria maioria (o que, aliás, não é propriamente prova de "ditadura da maioria").

A limitação do poder da maioria parlamentar-governamental passa também pela exclusão de certas funções da sua esfera. Para além do caso óbvio da nomeação e do governo dos juízes (cuja independência decorre da separação de poderes e do Estado de Direito), a "desgovernamentalização" de funções entre nós está também constitucionalmente estabelecida quanto ao Ministério Público (contrariamente ao que sucede em muitos outros países, onde ele depende do Governo) e quanto à regulação e supervisão da comunicação social. A Constituição permite ainda a criação de "autoridades administrativas independentes", isentas de controlo governamental, o que constitui uma notável limitação ao poder da maioria, dentro da própria esfera administrativa. Tal é o caso de várias autoridades reguladoras, desde o Banco de Portugal à Entidade Reguladora da Saúde, que não dependem nem respondem perante o Governo, podendo ser escrutinadas directamente pelo Parlamento.

Por último, na limitação dos poderes da maioria não podem ser esquecidas as várias entidades independentes de controlo e escrutínio do Governo e da Administração, entre as quais se contam o Provedor de Justiça, a Entidade Reguladora da Comunicação Social, a Comissão de Acesso aos Documentos Administrativos, a Comissão Nacional de Protecção de Dados Pessoais, etc. Sem esquecer obviamente o Tribunal Constitucional, que vela pela conformidade constitucional da acção legislativa da maioria, o que não é despiciendo numa Constituição com a densidade e as vinculações da nossa. Em geral, todos esses órgãos são eleitos pela AR, por maioria de 2/3, o que constitui outro exemplo de "poder de veto" da oposição, impedindo o controlo da maioria.

Se a tudo isto acrescentarmos a crescente "separação vertical de poderes" na nova arquitectura do "governo em vários escalões" (multilevel government) e a consequente transferência de poderes, quer em sentido ascendente (em favor da UE), quer em sentido descendente (para as regiões autónomas e as autarquias locais), então haveremos de concluir que, mesmo em caso de maioria absoluta, a tese da "ditadura do partido da maioria" não passa de uma conveniente ficção política.

(Publico, terça-feira, 17 de Fevereiro de 2009).

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