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19 de agosto de 2010

O risco plebiscitário 

Por Vital Moreira

Entre as várias propostas de reforço dos poderes presidenciais que o Prof. Jorge Miranda sugere para uma próxima revisão constitucional conta-se a de conferir ao Presidente da República um poder próprio de submeter a referendo nacional qualquer diploma aprovado pela Assembleia da República. Em jeito de contrapartida, também o Parlamento passaria a poder convocar autonomamente referendos, desde que por maioria de 2/3. Julgo que estas ideias não merecem aprovação, antes pelo contrário.

Atualmente, os referendos nacionais só podem ocorrer mediante convocação do Presidente da República, sob proposta da Parlamento ou do Governo, conforme os casos (de acordo com a divisão de competência legislativa entre ambos), o que requer a convergência da maioria parlamentar-governamantal e do Presidente. O segundo traço do atual regime do referendo está em que o voto popular nunca incide diretamente sobre a aprovação ou rejeição de uma lei, mas sim sobre uma questão política concreta que, em caso de aprovação popular, deve depois ser traduzida em lei pelo Parlamento.

Daqui decorrem duas notas políticas cruciais. Primeiro, prevalece a democracia parlamentar-representativa, pois o referendo nunca pode ser convocado sem proposta da própria Assembleia em matérias da sua jurisdição e a competência para aprovar ou revogar leis cabe exclusivamente aos órgãos representativos. Segundo, nenhuma das duas instituições envolvidas na convocação de referendos pode utilizar esse poder contra a outra.

Toda esta filosofia seria posta em causa com as referidas propostas. Por um lado, deixaria de ser necessária a convergência do Parlamento e do Presidente para a convocação de referendos, passando ambos a ter esse poder unilateralmente. Segundo, o referendo poderia passar a incidir diretamente sobre leis ou partes de leis (ou tratados). A questão é especialmente grave no caso da convocação presidencial de referendos sobre leis da Assembleia da República.

Tratar-se-ia, antes de mais, de um formidável reforço dos poderes presidenciais. Munido desse poder, o Presidente passaria a poder impugnar diretamente junto dos eleitores qualquer lei (sem excluir as leis de revisão constitucional) ou convenção internacional aprovada pela Assembleia. A concretização ou ameaça de concretização dessa faculdade poderia transformar-se numa poderosa alavanca do poder de Belém sobre São Bento, especialmente em casos de "coabitação" de diferentes orientações políticas. Onde não chegasse o poder de veto, poderia intervir o poder de convocação de referendos.

Seria enorme o potencial de conflito desse poder presidencial, nomeadamente no caso de leis sobre matérias mais suscetíveis de exploração populista. Imaginem-se os casos das leis do divórcio, das uniões de facto, dos casamentos de pessoas do mesmo sexo, da procriação medicamente assistida, só para citar os casos de divergência mais profunda nos anos mais recentes.

Por isso mesmo, a possibilidade de convocação unilateral de referendos sobre leis da Assembleia prestar-se-ia facilmente a exploração plebiscitária. Primeiro, estando tal poder disponível, aumentariam exponencialmente as movimentações dos setores sociais mais ativos para a sua utilização. Segundo, as petições até agora endereçadas à Assembleia da República para a convocação de referendos passariam a dirigir-se a Belém, com previsível muito maior impacto, em se tratando de iniciativas oriundas da sua própria base política. A pressão para o Presidente lançar o seu peso político num referendo contra uma lei da maioria parlamentar poderia ser irresistível, especialmente quando as próprias convicções presidenciais nisso conviessem.

O apelo referendário contra a maioria parlamentar seria o clima mais propício para a instabilidade política da própria presidência da República. Se o Presidente lançasse o seu peso político num referendo e depois viesse a perder a aposta, o desafio imediato com que poderia ser confrontado seria o de tirar consequências políticas da derrota e pedir a demissão (como sucedeu com o Presidente De Gaulle em França, em 1969, quando empenhou a sua permanência política num referendo por si convocado).

É evidente que a proposta de conferir também à Assembleia da República idêntico poder próprio de convocação de referendos não pode considerar-se um poder equivalente, desde logo porque só poderia ser decidido por uma maioria qualificada de 2/3. Trata-se, como se sabe, da maioria necessária para superar os vetos presidenciais nos casos mais exigentes, pelo que nenhum poder novo acrescentaria ao Parlamento. Em todo o caso, num ambiente de guerra política declarada entre Belém e São Bento, ficaria sempre aberta a possibilidade de exploração da via referendária contra a resistência do primeiro em promulgar um diploma aprovado pela segunda.

Seja como for, com o poder cumulativo de convocar referendos, o voto popular passaria a poder ser utilizado como última instância de recurso de uma instituição contra a outra nos conflitos entre ambas. A possibilidade de proliferação de referendos, com os custos financeiros e políticos inerentes, seria uma hipótese real, podendo modificar substancialmente o equilíbrio entre a democracia representativa e a democracia referendária entre nós.

Recordemos que inicialmente o referendo nem sequer era admitido pela Constituição, em reação ao lugar da instituição plebiscitária na Constituição do "Estado Novo" e em homenagem à democracia-parlamentar-de-partidos que se queria instituir entre nós. Só em 1989 é que se abriu caminho à via referendária a nível nacional, mediante um cuidadoso compromisso, que incluiu a necessária proposta parlamentar de qualquer referendo (salvo as hipóteses de convocação por iniciativa governamental), bem como exclusão de referendos diretos sobre leis ou tratados.

Esse compromisso constitucional não deve ser modificado nos seus traços constitutivos. Nesta matéria não vale a pena correr riscos, sobretudo quando estes são de natureza presidencial-plebiscitária.

(Público, terça-feira, 10 de Agosto de 2010)

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