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1 de maio de 2011

Est modus in rebus 

Por Vital Moreira

Diga-se tudo numa frase. Não há memória de um discurso presidencial, para mais numa tomada de posse do cargo, tão catastrofista, tão antigovernamental, tão ideologicamente sectário, tão abusivo dos limites constitucionais do cargo, nem tão populista. Este discurso inaugural de Cavaco Silva vai seguramente ficar na nossa história política, mas pelos maus motivos.

Desde logo, a alocução presidencial envereda por uma apresentação deliberadamente calamitosa da situação económica e social do país. Exposta em nome da "verdade", ela padece da omissão de partes essenciais da realidade. Para referir somente dois exemplos, não é curial denunciar a presente situação de alegada "emergência económica e social" sem referir a crise financeira e económica global que em grande parte a motivou, nem é justo carregar no impacto negativo das medidas de austeridade sem mencionar que elas são imprescindíveis para sanear e consolidar as contas públicas e para manter acesso ao crédito internacional. Não fica bem a um Presidente da República desenhar um panorama tão devastador com omissões tão comprometedoras.

Em segundo lugar, o discurso presidencial constitui uma verdadeira declaração de guerra ao Governo em funções, um requisitório sem nuances nem atenuantes. Nem o então Presidente Ramalho Eanes, na primeira fase do nosso regime constitucional - quando o governo respondia politicamente perante o Presidente da República e as dificuldades económicas e sociais não eram menores do que agora - foi tão longe na condenação de um governo. Cavaco Silva nem por um momento deixa entender que o impacto da crise internacional de 2008-09 entre nós seria sensivelmente a mesma qualquer que fosse o governo em funções e que a resposta à crise orçamental e da dívida pública teria sempre de passar por duras medidas de austeridade, aumentando a receita e cortando na despesa pública. Aliás, um governo de direita seria seguramente menos sensível a uma repartição equitativa dos sacrifícios do que um governo socialista. No discurso presidencial tudo se passa como se o Governo fosse culpado de tudo e nada tivesse feito para enfrentar a crise nem tivesse a seu crédito nenhum progresso. Não é próprio de um Presidente manifestar tanta parcialidade política.

Em terceiro lugar, as ideias expostas por Cavaco Silva estão manifestamente alinhadas pelo discurso político da direita, por exemplo na referência ao "excesso de Estado", na exaltação da família, na defesa das escolas privadas. Não foi por acaso que a direita parlamentar rejubilou com o discurso, perante o silêncio constrangido mas respeitoso das bancadas da esquerda. Um Presidente da República não está obviamente impedido de partilhar de uma certa orientação ideológica, mas se quiser apresentar-se como "Presidente de todos os portugueses", como é convenção constitucional e política entre nós, não pode permitir-se ser tão ostentatoriamente sectário em matéria ideológica.

Mais grave ainda é a sobranceria com que Cavaco Silva se permitiu apresentar um extenso rol de medidas de política económica, com se estivesse a apresentar um programa de governo alternativo. Nada no seu mandato constitucional legitima tal pretensão. No nosso sistema político, quem governa e conduz a política do país é o Governo, não o Presidente da República. Este tem essencialmente uma função de supervisão do regular funcionamento das instituições políticas, o que não inclui nenhum poder de tutela sobre o Governo, que aliás não depende da sua confiança política. No respeito da separação de poderes, não lhe cabe imiscuir-se na esfera governativa. Pode indicar e defender grandes objectivos nacionais, mas não se pode permitir apresentar os caminhos para os alcançar. É para isso que existem os partidos políticos, no governo e na oposição. Numa democracia constitucional, a primeira obrigação do Presidente da República é respeitar as fronteiras do seu mandato constitucional e eleitoral, abstendo-se escrupulosamente de atuar "ultra vires".

Por último, Cavaco Silva não poderia surpreender mais do que ao alinhar com a fácil crítica populista aos políticos em geral - como se ele não fosse um deles - e ao apelar directamente ao apoio a manifestações inorgânicas, em nome de um equívoco "sobressalto cívico". Houve quem em seu favor invocasse o precedente do "direito à indignação" de Mário Soares, na altura dos protestos contra um Governo do próprio Cavaco Silva. Mas as situações não se equivalem. Soares limitou-se a reconhecer a liberdade de manifestação e protesto, enquanto Cavaco Silva veio explicitamente apelar ao protesto e à contestação, o que é de todo inédito.

Para além do seu conteúdo divisivo e conflituoso, o que é particularmente chocante na oração presidencial é o seu tom ostensivamente emocional e be- licoso, como se estivesse a tirar desforra de algum agravo sofrido. É evidente que o Presidente poderia ter dito tudo o que pretendia por outras palavras e sem a crispação que usou, num misto de julgamento e de condenação sumária. Qualquer que seja a justificação, a verdade é que um Presidente da República não pode dar-se a liberdade de "falar com as vísceras". Mesmo quando entenda ter razões para ser duro, deve sempre observar um módico de contenção e de "self-restraint" institucional. Como diziam os antigos, "est modus in rebus", ou seja, as coisas querem-se feitas com moderação.

Com este discurso, em vez de contribuir para superar as agruras da crise e da austeridade, o Presidente da República fez por agravá-las. Em vez de aplanar a conflituosidade social e política, crispou-a. Em vez de desviar a pressão dos mercados sobre a dívida soberana nacional, alimentou-a. Cavaco Silva deu uma lição de como não deve ser um discurso presidencial. Não é algo de que algum inquilino de Belém se possa orgulhar.

[Público, terça-feira, 15 de Março de 2011]

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