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1 de maio de 2011

Lições de uma crise anunciada 

Por Vital Moreira

Como se não bastasse ser apeado do poder por uma coligação negativa das oposições à direita e à esquerda, o Governo do PS viu-se logo depois obrigado a solicitar a ajuda financeira externa que Sócrates tinha estrenuamente tentado evitar e está agora forçado a negociar ele mesmo em más condições (como "governo de gestão") os termos da ajuda que as oposições provocaram. Enquanto o PS paga pela irresponsabilidade alheia, o PSD rejubila, tendo conseguido o pleno dos objetivos que perseguia ostensivamente desde o Verão do ano passado, logo depois da mudança de liderança.

Tudo o que podia correr mal ao Governo, correu pior. Dificilmente poderia ter sido outro o desenlace da crise das finanças públicas resultante do terrível crise de 2008-09, nas condições políticas em que Governo teve de defrontar, tanto a nível interno como a nível europeu. Resta saber se tudo tinha de ser assim.

Quando, para surpresa de muitos, o PS venceu as eleições de Outubro de 2009 não havia ainda ideia clara sobre o enorme impacto negativo da crise económica global de 2008 (e das generosas medidas tomadas para a combater) sobre as nossas finanças públicas, agravada pela profundidade da crise da dívida soberana noutros Estados-membros da União Europeia, a começar pela Grécia. Também não foram imediatamente interiorizadas as vulnerabilidades de um Governo sem apoio parlamentar maioritário para levar a cabo um programa mais exigente de disciplina orçamental.

Era, no entanto, fácil ver que os perigos para a sobrevivência do Governo não estavam tanto numa hipotética moção de censura conjunta das oposições ou numa dissolução da AR pelo Presidente da República como sobretudo no risco de ver chumbadas as propostas orçamentais, retirando condições de governo. Como aqui mesmo se defendeu, o Governo deveria preparar-se para uma postura ofensiva no confronto com as oposições, sobretudo com o PSD, incluindo a possibilidade de fazer abrir uma crise política, por rejeição parlamentar do orçamento ou por derrota de uma moção de confiança. Não foi porém essa a atitude adotada. Jogando na carta da responsabilidade e da moderação, o Governo preferiu ser em geral mais defensivo do que ofensivo, mais compromissório do que intransigente. Isso explica a falta de ambição do primeiro orçamento pós-eleitoral (para 2010), os percalços da execução orçamental e a política dos sucessivos programas de austeridade, à medida que cada um deles se ia revelando insuficiente para afastar a desconfiança e a pressão dos mercados internacionais da dívida pública, entretanto acicatados pela crise grega, primeiro, e da crise irlandesa, depois.

No verão do ano passado, com o orçamento de 2011 à vista, o novo líder do PSD veio complicar os dados da questão, ao anunciar que não viabilizaria nenhum agravamento de impostos, mesmo que por via da redução das deduções fiscais em sede de IRS. Era uma declaração antecipada de crise política, se o ultimato fosse mantido até ao fim e se o Governo considerasse impossível uma consolidação orçamental exclusivamente baseada em cortes selvagens na despesa pública. A incerteza criada sobre a aprovação do orçamento não fez senão alimentar o nervosismo dos mercados financeiros internacionais e puxar para baixo o rating da dívida pública nacional. Aproximava-se um momento decisivo.

O difícil compromisso orçamental afinal conseguido evitou a crise política iminente mas não ajudou a desanuviar o horizonte político e financeiro, antes pelo contrário. Primeiro, com as cedências ao PSD deixava de haver suficiente margem de folga orçamental para assegurar os objetivos de redução do défice. Segundo, continuavam por definir as medidas orçamentais adicionais para garantir a ulterior redução do défice em 2012 e 2013. Terceiro, a indefinição europeia também não ajudou nada, quer pela precipitação da crise irlandesa, quer pela demora em definir o quadro institucional de estabilidade do euro.

Conhecido o que se seguiu, é difícil não dar razão aos que duvidaram da virtude desse compromisso orçamental "coxo". A partir daí, o Governo passou a estar em permanente teste de resistência a cada nova emissão da dívida, à espera que uma boa execução orçamental e a clarificação da situação europeia aliviassem a pressão sobre a dívida pública nacional. A resistência do Governo em recorrer à ajuda externa fazia todo o sentido - dados os custos simbólico-reputacionais e os custos sociais que uma tal iniciativa necessariamente comportaria -, pelo menos até à definição do quadro europeu de estabilidade do euro e à apresentação do novo programa de estabilidade orçamental nacional, no âmbito do novo mecanismo do "semestre europeu".

Foi neste ambiente que o discurso de tomada de posse de Cavaco Silva, descrevendo um quadro verdadeiramente catastrófico da situação económica e financeira nacional - que não podia deixar de assustar ainda mais os mercados - soou como uma declaração de guerra ao Governo. As oposições unidas não se fizeram rogadas, aproveitando a primeira oportunidade para derrubarem o Governo e deitarem tudo a perder, justamente pela rejeição do novo programa de estabilidade, cuja apresentação Sócrates decidira antecipar como medida preventiva.

Não deixa de ser especialmente penoso para o Governo ser derrubado exatamente quando se abria um perspetiva séria de superação das dificuldades e ainda mais o é que, em consequência da abertura da crise política, tenha de ser o próprio Sócrates a ter de solicitar e a assinar os termos da ajuda externa contra a qual tanto lutou, tanto mais que ela não pode deixar de ser mais exigente do que o famigerado PEC IV que a oposição tão irresponsavelmente chumbou.

Depois desta amarga experiência, é caso para dizer que quando um Governo não dispõe de maioria parlamentar nunca deve deixar às oposições a escolha do momento nem do modo de se deixar derrubar...

[Público, terça-feira, 12 e Abril de 2011]

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