<$BlogRSDUrl$>

9 de julho de 2011

A exceção madeirense 

Por Vital Moreira

Em mais uma das suas usuais provocações políticas, Alberto João Jardim veio declarar que a redução das autarquias locais prevista no acordo de ajuda externa da União Europeia e do Fundo Monetário Internacional não vai ocorrer na Madeira. Desta vez, porém, o líder do PSD madeirense não se propõe somente desafiar a autoridade da República, como faz tantas vezes, comprometendo também a responsabilidade internacional do país.

Não vale um chavo o argumento constitucional de Jardim, segundo o qual a criação ou extinção de autarquias territoriais nas regiões autónomas é competência das assembleias legislativas regionais. Na verdade, a mesma lei fundamental diz que essa competência é exercida nos termos da lei respetiva, que é da competência exclusiva da AR. Se, portanto, a lei vier a estabelecer regras para a agregação de autarquias territoriais, é evidente que é de aplicação a todo o país. Não se duvida que terá de ter-se em conta o caso das pequenas ilhas, onde se pode justificar a permanência de municípios próprios apesar da diminuta população e do pequeno território. Mas não há nenhuma justificação para que a concentração de autarquias não se verifique na ilha da Madeira e nas ilhas maiores dos Açores. Seja como for, essa decisão cabe exclusivamente ao Parlamento nacional, ouvidas as assembleia regionais, como é devido. E incumbe as estas cumpri-la.

A divisão territorial e o mapa das autarquias insulares é uma questão do país e não somente, nem principalmente, das regiões. Elas estão submetidas às leis gerais do país, não sendo propriedade privada dos órgãos de governo regional. De resto, a racionalização do mapa autárquico nas regiões autónomas não implicaria somente uma melhoria da prestação de serviços públicos locais e uma redução da despesa autárquica (instalações, equipamentos, consumíveis, dirigentes e pessoal), mas também uma poupança no próprio orçamento nacional, pois as subvenções às autarquias mais pobres e a "perequação financeira" dos municípios recaem sobre aquele e não sobre os orçamentos regionais. São os contribuintes do Continente, e não os insulares, que pagam essa contribuição para as autarquias das regiões autónomas. Portanto, a questão não pode ser alheia ao Estado.

A declaração antecipada de não acatamento da lei que vier determinar a agregação de autarquias locais insere-se na sistemática atitude de insubordinação de Jardim contra aquilo que ainda resta de competências próprias dos órgãos de soberania nacionais. O seu propósito é, como sempre foi, alargar sempre o seu espaço de decisão própria, deixando à República apenas a reserva dos onerosos setores da justiça, da segurança e da defesa -- para além, bem entendido, da cornucópia das transferências orçamentais e dos múltiplos subsídios do orçamento nacional às despesas regionais. O projeto jardinista sempre foi o de uma quase-independência efetiva sem os respetivos custos, antes à custa do orçamento do próprio Estado. O melhor de dois mundos, portanto.

O programa de ajuda externa da UE e do FMI vem impor significativas restrições financeiras às regiões autónomas - diminuição das transferências orçamentais, redução do diferencial dos impostos regionais para os impostos nacionais, racionalização da administração regional e do setor empresarial regional, etc. -, que as obrigam a compartilhar do esforço nacional de disciplina orçamental e de contenção do endividamento público. Infelizmente, a troika não adiantou a medida que mais poderia corrigir a "exploração" do Continente pelas regiões autónomas, particularmente a Madeira (cujo PIB per capita está muito acima da média nacional), a saber, o facto de elas não arcarem com a sua quota-parte nas despesas gerais da República, onde se contam obviamente a defesa, a segurança, a justiça, os órgãos de soberania, a participação na UE, a representação externa (incluindo a contribuição financeira para organizações internacionais). Não se compreende que tais despesas, que a todos beneficiam, sejam suportadas somente pelo orçamento nacional, para o qual as regiões autónomas não contribuem, por elas ficarem com todas as receitas fiscais nelas cobradas ou geradas. Poderia aceitar-se essa isenção enquanto o nível de desenvolvimento das regiões autónomas fosse muito inferior ao do resto do país, mas não quando se verifica o inverso, como sucede no caso da Madeira, que deveria ser "contribuinte líquida" do orçamento nacional, em vez de continuar a ser um pesado beneficiário. Quando se trata de impor disciplina orçamental e austeridade financeira, a primeira regra é que cada um assuma a sua parte côngrua de sacrifícios, em vez de manter privilégios e isenções indevidas à custa dos outros.

Seja como for, a recusa de Jardim em cumprir uma das medidas do programa de ajuda externa só pretende querer dizer que na Madeira ainda é ele quem define o que pode ser feito em matéria de disciplina financeira e de racionalização do setor público. Mas esta arrogância só pode suceder mercê da sistemática falta de determinação e de coragem política de Lisboa para enfrentar e resistir à deriva de "separatismo soft" de Jardim. Contam-se nesta complacência os presidentes da República, que em geral silenciam os desmandos de Jardim, os sucessivos governos, que raramente resistem à sua chantagem política, e obviamente o PSD, que detém o governo regional desde sempre e que nunca se demarcou, muito menos contrariou, a instrumentalização da autonomia regional ao serviço de uma política perdulária, baseado na irresponsabilidade financeira, no endividamento incontinente e na chantagem separatista sobre a República.

[Público, 3ª feira, 17 de Maio de 2011]

This page is powered by Blogger. Isn't yours?