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11 de março de 2012

Os dois Tratados 

Por Vital Moreira

Confirmando a regra de que as crises são as principais alavancas da integração europeia, foram há dias concluídos em Bruxelas, ainda em plena "crise da dívida pública", dois novos tratados que visam aprofundar a integração orçamental e financeira da União Europeia.

O primeiro deles cria o "Mecanismo Europeu de Estabilidade", que, como o nome indica, institui um fundo monetário mútuo permanente para ajudar os Estados-membros que possam vir a passar por dificuldades de se financiarem nos mercados da dívida pública, substituindo a atual "Facilidade Europeia de Estabilidade Financeira", um instrumento criado "ad hoc" e a título temporário para socorrer os países atualmente sob programa de ajuda, ou seja, a Grécia, a Irlanda e Portugal. Entre as novidades do novo mecanismo conta-se a possibilidade de ele intervir no mercado primário da dívida soberana, adquirindo obrigações logo na emissão.

O outro tratado é o chamado Pacto orçamental ("Fiscal Compact" em inglês), que visa sobretudo reforçar a disciplina orçamental nos Países da moeda única e aprofundar a coordenação das políticas económicas entre eles. Há duas notas dignas de destaque. Primeiro, os Estados signatários obrigam-se a introduzir na sua ordem jurídica interna, com efeito vinculativo – e preferivelmente a nível constitucional –, a regra do equilíbrio orçamental, bem como um mecanismo automático de correção dos desvios que se verifiquem, segundo um modelo aprovado pela Comissão Europeia. Segundo, o tratado reformula o limite ao défice orçamental anual, que atualmente é de 3% em geral, para passar a ser de 0,5% de "défice estrutural", descontado portanto dos efeitos da variação do ciclo económico.

No entanto, se os dois tratados preenchem o mesmo objetivo de reforço da integração orçamental dentro da União Europeia, a verdade é que são muito diversas as circunstâncias que rodearam a sua aprovação. Enquanto o tratado instituidor do Mecanismo Europeu de Estabilidade é um acordo entre todos os Estados-membros da UE, no quadro dos Tratados em vigor, e não deu lugar a nenhuma controvérsia, já o Pacto Orçamental surge à margem dos Tratados da União, congregando somente 25 dos 27 Estados-membros, visto que o Reino Unido, primeiro, e a República Checa, depois, decidiram ficar de fora, tendo a sua elaboração e aprovação sido rodeada de alguma controvérsia, especialmente no Parlamento Europeu.

Porquê?

De entre as muitas críticas a este novo tratado, há duas assaz pertinentes. Primeiro, estando à margem dos Tratados da União, há um evidente problema constitucional na sua compatibilização com os segundos e com a possibilidade de ele ser implementado pelas instituições da União (Comissão, Parlamento, Tribunal). Na verdade, embora não sendo um tratado da União ele visa criar novas obrigações e novas responsabilidades para os Estados-membros da União enquanto tais. Segundo, embora dando passos decisivos no sentido de uma genuína "união orçamental", o novo tratado fica bem aquém desta, já que omite outras dimensões importantes, como a emissão de dívida soberana mutuamente garantida ("eurobonds"), a criação de receitas orçamentais próprias da União (como a muito discutida taxa sobre operações financeiras) e a harmonização tributária entre os Estados-membros, para evitar a competição e o "dumping" fiscal dentro do mercado único.

Há outra crítica muito difundida ao novo pacto orçamental, esta substantiva, que consiste em dizer que o Tratado absolutiza a disciplina orçamental, redundando numa "ilegalização de políticas keynesianas", ou seja, tornando impossível o fomento do crescimento e do emprego por via do aumento do gasto público, em fases de retração económica. Porém, não tem fundamento esta crítica. Primeiro, o próprio "Pacto orçamental" admite expressamente que os limites do défice podem ser alargados em caso de grave recessão. Segundo, a própria definição de "défice estrutural" inclui o seu ajuste automático ao ciclo económico, permitindo défices nominais mais elevados em caso de contração do crescimento e do emprego, quando a economia fica muto abaixo do seu potencial de crescimento estrutural.

Seja como for, os dois novos tratados da União Europeia vão agora ser submetidos a ratificação nos respetivos Estados signatários. Se o Mecanismo Europeu de Estabilidade não deve suscitar objeções de maior, já o Pacto orçamental levanta naturalmente objeções das forças políticas normalmente opostas à integração europeia, sejam os partidos nacionalistas à direita, sejam os partidos da extrema-esquerda.

E entre nós, como vão passar-se as coisas?

Sendo certo que os partidos da coligação no poder (PSD e CDS) devem apoiar o Pacto Orçamental e que os dois partidos da extrema-esquerda devem votar contra, como já anunciaram aliás, resta o caso do PS, onde o juízo sobre o tratado pode não ser muito entusiástico. Todavia, só se pode antecipar o voto favorável.

Primeiro, é evidente que se o PS estivesse no Governo não regatearia o apoio ao tratado, não devendo agora rejeitá-lo só porque está na oposição. Mesmo na oposição, o PS deve continuar a ser um partido de governo. Segundo, o acordo mereceu em Bruxelas o apoio dos primeiros-ministros socialistas em funções (Dinamarca, Áustria e Bélgica), não havendo razão para o PS se demarcar dos mesmos. Terceiro, o PS não pode permitir-se alinhar com a esquerda antieuropeísta na rejeição de um tratado que traz maior integração europeia.

Nesta matéria, como quase sempre, a clivagem entre as forças europeístas e as antieuropeístas é mais forte do que as divergências entre a esquerda e a direita dentro da "coligação" pró-europeísta.

[Jornal de Negócios, 6 Março 2012]

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